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Como escreveu Hegel "A coruja de minerva só levanta voo ao anoitecer". Esta frase pode ser interpretada de diversas formas, embora o filósofo alemão se quisesse referir à necessidade de distanciamento dos factos para os poder interpretar do ponto de vista estrutural e não apenas conjecturalmente.
Esta citação vem a propósito da interpretação que a história faz de personagens controversas. Pessoas odiadas em vida, cujos ventos da história se encarregaram de lhes conceder uma biografia mais bondosa. São vários os exemplos, no entanto Pombal parece-me o mais paradigmático. Se dissessem aos seus contemporâneos que teria uma estátua no sítio mais nobre do país, passados apenas duzentos e poucos anos, provavelmente não acreditariam. Ironia das Ironias, no topo de uma avenida com o nome de liberdade! Outro caso mais recente, Oliveira Salazar, também já se encontra em fase de reabilitação, como atesta um recente programa televisivo e a profusão de obras, originais ou reeditadas, dadas à estampa ultimamente.
No entanto já tive oportunidade de falar nestes casos, pelo que gostaria de referir três personalidades da história recente de Portugal que, numa escala mais reduzida, reúnem os mesmos condimentos dos dois casos que mencionei. Pessoalmente, não as consigo catalogar tout court nem como herois nem como vilões, porquanto que a espectacularidade das suas façanhas só esbarra na ilicitude dos seus actos. São eles o "Remexido", o Zé do Telhado e o Alves dos Reis.
O "Remexido", alcunha herdada de família, foi o nome com que ficou conhecido na história José Joaquim de Sousa Reis, combatente indefectível da causa de D. Miguel I. Consideram-no vilão provavelmente porque a História é sempre contada pelos vencedores, e como derrotado sujeitou-se ao rótulo que os liberais lhe colocaram. A lógica é semelhante à do tribunal de Nuremberga, quando questionaram um general do exército nazi sobre as causas que o levaram a estar sentado no banco dos réus. Este respondeu simplesmente que se encontrava nesta situação porque perdeu a guerra, porque se tivesse ganho era o seu interlocutor que ali estaria a responder pelos seus actos. É verdade que o "Remexido" espalhou o terror muito para além do final da guerra, no entanto também não deixa de ser verdade que as prerrogativas da Concessão de Évora-Monte, que previam a amnistia a todos os combatentes que lutaram pela facção absolutista, não foram cumpridas, dadas as represálias de que estes foram alvo. O "Remexido" perante este cenário de retaliação, a que a sua família não foi poupada, resolveu então não entregar as armas e resisitir praticamente até ao último homem, que foi ele.
Executado em Faro, em 1838, não teve direito a estátuas como Saldanha, Sá-Nogueira ou Terceira. Mas só não as teve porque perdeu, ao contrário dos nomes que citei. Inclino-me mais para o considerar heroi pela bravura e dedicação, mas sei que se trata de uma posição polémica.
O "Zé do Telhado" é considerado o Robin dos Bosques português, aparentemente por partilhar os proventos da sua actividade criminosa com os mais necessitados. Tinha por zona de actuação o norte do país, tendo sido preso em 1859 e encaminhado para a Cadeia da Relação do Porto, onde privou com Camilo Castelo Branco, a braços com o caso de adultério com Ana Plácido. Considero Zé do Telhado um vilão. Ele não lesou apenas os ricos. Remediados, pobres e gente trabalhadora viram-se extirpados de rendimentos de trabalho honesto por obra e graça de Zé do telhado e da sua equipa de bandoleiros. No século XIX, em pleno dealbar do romantismo, esta figura suscitou admiração e interesse que justifica que alguém lhe dedique algumas linhas 150 anos depois, mas na essência nada o distingue dos restantes bandidos que existiam naquela altura.
O último caso, Alves dos Reis, é de todos o que mais facilmente eu setencio de vilão, até porque não se conhece nenhuma actividade benemérita que pudesse contrabalançar com a sua actividade criminosa. No entanto, dos exemplos que citei, foi o único que nunca empregou força física para conseguir os seus intentos, a que se soma uma genialidade a todos os títulos notável. A sua actividade burlesca começou desde cedo. Forjou um diploma de engenharia de uma universidade fictícia, comprou acções de empresas com cheques sem fundo, entre outros episódios recambulescos. Tornou-se célebre quando em 1925, aproveitando a balbúrdia republicana, fundou um banco em Angola - Banco Angola e Metrópole - financiado através de notas de 500 escudos falsas, num montante que se aproximava de cerca de 1% do produto interno bruto português na altura. O caso teve repercussões internacionais e levou à saída de circulação de todas as notas de 500$. A prisão foi o seu destino, não antes sem ter acumulado riqueza através da compra de participações sociais em diversas empresas, tentando inclusivamente adquirir o Diário de Notícias.
Serão os ventos da história magnânimes ao ponto de os absolver?
Não sei se será correcto falar numa etiqueta tipicamente lusitana. Não tenho, tão pouco, o propósito de apresentar um estudo exaustivo sobre a forma como nos relacionarmos, no entanto existem um aspecto particular do nosso trato pessoal que gostaria de salientar: o beijo(s)
Como nota prévia, convém ter presente que a nossa matriz latina aproxima-nos dos nosso congéneres espanhois, italianos ou franceses (e dos seus respectivos domínios colonias). Este temperamento impulsivo, carregado de emotividade e de expressividade é inegável. No entanto o português, ao contrário dos demais, é por definição ciclotímico, ou seja flutua entre a euforia e a depressão com bastante facilidade, por contraste com o optimismo espanhol, o chauvinismo francês ou o narcisismo italiano.
Este nosso temperamento latino traduz-se em coisas tão simples como o gesto de nos cumprimentarmos com dois beijos na face, por oposição aos anglo-saxónicos que geralmente se ficam por um beijo, em regra com maior frivolidade. No seio da própria família real espanhola o cumprimento é feito com dois beijos na face. Em Portugal começou-se a institucionalizar, nomeadamente depois de Abril e com maior predomínio entre as classes altas (realisticamente ou por desejo ascencional), o cumprimento com apenas um beijo na face.
Avanço com uma explicação que me parece plausível. Este hábito, tipicamente anglo-saxónico, poderá ter tido o seu dealbar no decurso das guerras liberais, quando parte da nobreza portuguesa, partidários dos direitos da Rainha, se exilaram em Londres: bastião da resistência liberal. Foram várias as personalidades que por lá passaram, com destaque para o Marquês de Palmela (futuro Duque de Faial e de Palmela), Conde de Vila Flor (futuro Duque de Terceira), entre outros.
Este hábito caiu em desuso até ser desenterrado pelo PREC (Periodo Revolucionário em Curso) na ressaca de expropriações, nacionalizações e ocupações decretadas a partir do célebre V governo provisório, chefiado pelo companheiro Vasco. As famílias mais abastadas viram-se forçadas a abandonar o país, sem serem poupadas a alguns vexames, como prisões arbitrárias, ameaças de morte, etc. Quando regressaram, a partir dos finais dos anos 80, em pleno consulado cavaquista, pouco mais teriam que os distinguisse dos demais, do que as magras indeminizações que o Estado lhes concedeu. As antigas honras, só foram recuperadas, em pleno, no malogrado desafogamento guterrista, embora não conseguissem ombrear com alguns "self made man" com Belmiro e Amorim à cabeça, que criaram os seus impérios à medida que o Estado ia reprivatizando.
Sem o ascendente financeiro, restava-lhes a educação burguesa, sinónimo de dinheiro antigo e de distinção social face ao novo riquismo sem modos nem educação que estes novos capitalistas representavam. O beijo, entre outros protocolos sociais, ganharam uma nova vida, revigorando-se à medida que o orgulho pelo nome substitui o mérito nas suas credenciais sociais. É óbvio que o recrudescimento do beijo único é apenas um desses sintomas, no entanto não deixa de ser um aspecto importante a reter. O desejo ascencional encarregou-se de alargar o âmbito deste gesto, sem que os próprios percebam muito bem porquê.
Hoje em dia parece que o snobismo se tornou uma virtude. Já assisti num programa de TV (não me recordo qual era o reality show) a um comentário em que alguém admitia, sem esconder uma pontinha de orgulho, que era snob, justificando o facto por ter sido educada para tal. A probabilidade dessa pessoa ler estas linhas não será elevada, no entanto poderia apenas registar que a origem parte do termo latino "sine nobilitate". Em Inglaterra, uma vez mais, as listas dos moradores indicavam junto de cada nome a profissão e a classe da pessoa. Por este motivo ao lado dos nomes dos simples burgueses aparecia a abreviatura s.nob., que quer dizer sem nobreza.
Como se percebe, não é motivo para grande orgulho.
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