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Não tivesse como rotina, principalmente às sextas-feiras, ir a Campo de Ourique buscar o meu filho à escola e, provavelmente, nunca me teria surgido a ideia de escrever este texto, apesar da plena consciência da reflexão que aqui aduzirei. Habitualmente passo pela Rua Coelho da Rocha, onde está sediada a Fundação Fernando Pessoa, última morada do escritor no reino dos vivos. Um pouco mais à frente, a umas escassas centenas de metros, fica a Igreja do Santo Condestável, a última morada de Nuno Alvares (no reino dos mortos).
Numa associação rápida realizei algo que até então me tinha passado em claro. A Casa Fernando Pessoa, criada para homenagear o grande poeta, apenas existe porque no século XIV existiu um herói que, contra a opinião dominante, ousou acreditar que era possível manter Portugal como um país livre e independente. Acreditou que conseguíamos, com a nossa força e tenacidade, vencer o arrogante castelhano que nos queria submeter. Foi este herói que abriu caminho para a Dinastia de Avis, obreira da expansão portuguesa, que nos elevou à condição de potência planetária, percursora da globalização. Foi sob o manto e a coroa de monarcas de Avis que explorámos a Costa de África e chegámos à Índia. Não satisfeitos, descobrimos e colonizámos o Brasil. Ninguém conseguiu exprimir esta obra de forma tão bela como Camões:
De África tem marítimos assentos
É na ásia mais que todas soberana
Na quarta parte nova os campos ara
E, se mais mundo houvera, lá chegara
Camões não sabia que existia Oceânia, mas também nesse continente deixámos um legado histórico. Hoje não oferece dúvidas que foram os portugueses, talvez Cristóvão de Mendonça, os primeiros ocidentais a pisar solo Australiano.
Fernando Pesssoa, tal como Camões, deve a sua glória (em ambos os casos póstuma) à singularidade de conseguirem criar uma obra em português, para falantes de português e com um poder político constituído por portugueses. Fossemos nós apenas uma região espanhola, mesmo que conservássemos uma língua própria, sempre subalterna face à língua franca que seria inevitavelmente o castelhano (como sucede nas regiões espanholas, como por exemplo na Catalunha), e nunca Camões e Fernando Pessoa teriam expressão. O primeiro porque a sua obra, profundamente nacionalista e encomiástica face à nação portuguesa, não teria fonte de inspiração se perdêssemos em Aljubarrota e não tivéssemos expansão. Não existiriam na galeria dos heróis homens como Afonso de Albuquerque, Duarte Pacheco ou Vasco da Gama – para não falar do próprio Nuno Alvares.
O segundo provavelmente não deixaria de ser um grande poeta mas em língua inglesa, não estivesse o seu inegável talento já plasmado nos seus poemas de juventude, escritos na língua de Shakespeare, idioma que dominava completamente devido à sua estadia na África do Sul.
Seria injusto evocar apenas a obra épica no legado dos nossos dois maiores poetas. Na lírica camoniana a Canção X, profundamente autobiográfica, seria uma obra-prima em qualquer língua, embora o seu interesse seja concitado principalmente pela tentativa de compreender melhor o poeta, cuja passagem pelo mundo foi bastante parca em documentos.
Pessoa deixou-nos uma arca com milhares de páginas, cujo alcance ainda demorará muitas décadas a apurar. Bastaria evocar o verso de Ricardo Reis, que adoptei como autêntico lema de vida - “Para ser grande, sê inteiro” – para exemplificar o alcance da sua obra.
Não é só Pessoa e Camões que devem a sua obra a homens da gesta de Nuno Alvares. Somos todos nós, que temos esta dívida pelo herói dos heróis portugueses. É a importância deste legado que não me cansarei de evocar ao longo da vida.
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