Acabei há dias de ler uma excelente biografia de Carlos da Áustria, último Imperador do Império Austro-húngaro, numa obra notável de Jean Sévillia, e que merece, até pela circunstância da recente beatificação do monarca, uma edição em português.
Ao ler a sua biografia lembrei-me do Príncipe Míchkin, célebre personagem do romance "O Idiota" de Dostoiévsky. Uma pessoa com tal sensibilidade humana e bondade natural que acaba por ser considerado um...idiota. Tal como na obra do romancista russo, o epíteto é claramente injusto.
Por variadíssimas razões, a sua subida ao trono imperial ocorreu no pior dos cenários possíveis. Em primeiro lugar, teve que conviver com o "fantasma" do seu antecessor, Francisco josé, que esteve 68 anos sentado no trono imperial. Depois, tornou-se imperador no meio da mais sangrenta guerra que a humanidade até então tinha conhecido. A sua primeira preocupação foi desde o primeiro minuto terminar a guerra. Para tal, socorreu-se dos seus cunhados Sixto e Xavier de Bourbon Parma (bisnetos do nosso Rei D. Miguel), como interlocutores junto da França e do Reino Unido. Chegou inclusivamente a comprometer-se com a entrega da região da Alsácia Lorena, em poder da Alemanha desde a guerra Franco-Prussiana. Mais tarde, a divulgação desta carta colocou-o num posição delicada perante os súbditos de Gullherme II.
A sua outra grande preocupação, já manifestada enquanto príncipe, seria a reorganização política do império. A Austro-Hungria era um aglomerado compósito de 11 nacionalidades, desde os povos eslavos do sul, aos polacos da Galícia, aos povos da Boémia, para além da Áustria e da Hungria. No pensamento do imperador estava a criação de uma federação de estados, aprofundando a reforma de 1868 (muito influenciada pela celebre Sissi) e que era, segundo o monarca, condição sine qua non para a manutenção do império. No entanto, esta reforma era para ser feita em tempos de paz. Quando a tentou executar - já o cenário da derrota militar pairava no horizonte - não foi mais do que uma fuga para a frente.
Ao contrário do seu antecessor, Carlos prescindia das formalidades, partilhando das privações alimentares tal como o seu povo. Punha a mão no ombro dos soldados, mesmo os de mais baixa condição, e não olhava a meios para evitar baixas humanas.
Essa sua inelutável veia pacifista teve sempre na Alemanha a mais obstinada adversária. A postura belicista do Kaiser não deixava margem de manobra para o jovem monarca. No entanto, foi sempre deixando a sua posição bem clara no decurso da guerra, advertindo os seus aliados para o perigo da guerra submarina. Debalde. Animados pelas vitórias, os alemães iniciaram a guerra submarina que, como Carlos previu, iria provocar a entrada dos norte-americanos na guerra e assim desiquilibrar a balança em favor das nações aliadas.
O sentido premonitório de Carlos da Áustria não se ficou pela ideia de federação nem pelo erro da guerra submarina. Ele não negligenciou, em momento algum, a ameaça bolchevique que, na sua opinião, iria assolar, nas próximas décadas, toda a Europa Oriental.
Entre os feitos do Imperador conta-se, por exemplo, a criação do primeiro ministério da Saúde de que existe registo na História Política.
No entanto, a sua grande fraqueza - a posição subalerna do seu exército face ao seu aliado germânico - impediu-o de conseguir as tréguas com os aliados. A realidade é que esta trégua não interessava nem à França nem à Inglaterra, que queriam destruir o poder belicista e económico alemão e acabar com os Habsburgo.
Com a capitulação, decidida em primeira instância pelo Imperador Carlos da Áustria, na esperança de uma saída honrosa ao abrigo dos 14 pontos de Presidente Wilson, rebentam os conflitos internos no império, que o obrigam a abandonar o trono imperial, embora se tenha sempre negado a assinar a abdicação. Pela fidelidade a esse princípio, foi obrigado a exilar-se na Suiça, de onde partiu duas vezes para tentar recuperar a coroa real Húngara. Ambas as tentativas acabaram malogradas, pelo que teve que abandonar a Suiça por violação das condições de exílio.
Foi neste contexto que foi levado para a ilha da Madeira, onde viveu os últimos meses da sua vida. No arquipélago português concitou a admiração geral da população, que não poupou esforços para suavizar o exílio ao imperador. Acabou por falecer na sequência de uma pneumonia, tendo sido sepultado na igreja da Senhora do Monte no Funchal.
É o único Habsburgo que não regressou à pátria, ao contrário da sua mulher a Imperatriz Zita, o que se justifica pelo culto prestado há quase 90 anos pelos habitantes da ilha, e que foi ainda reforçado pela sua beatificação em 2004.
Curiosamente, foi beatificado pelo Papa João Paulo II, de seu nome Karol Wojtyla, e cujo primeiro nome, em Polaco, significa Carlos. Não se trata de uma mera coincidência. O pai do Papa era militar do Império Austro-Hungaro, tendo sido condecorado pelos seus feitos militares. Certamente que a medalha que recebeu, com o nome do Imperador, teve influência na escolha do nome do seu filho.
O Imperador Carlos, bem como Nicolau II, ou o nosso D. Manuel II, teve o azar de estar dos lado dos vencidos. Assim é a História, sempre escrita pelos vencedores, que votou o imperador à mesma sorte dos últimos monarcas dos respectivos países, ou seja ao esquecimento ou ao descrédito (ou ambos). Perguntem ao cidadão comum quem foi o último Rei de Portugal, e ele dificilmente saberá. Agora, se perguntarem pelo Marquês de Pombal, ou pelo Mestre de Avis, a questão muda de figura. Pois, mas estas figuras foram sacralizadas pela historiografia liberal do século XIX, cuja tradição foi prolongada pela República Jacobina de 1910-1926.
É esta a sorte dos vencidos!
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