A forma como interpretamos a realidade que nos rodeia depende de uma multiplicidade de factores, que podem ir desde as experiências que vamos vivendo, as pessoas que vamos conhecendo, os locais que visitamos, os livros que lemos, as matérias que estudamos, o trabalho que executamos,etc.
Não esquecendo todas estas influência e outras que não caberiam neste texto, gostaria de sublinhar a importância dos livros. Esta importância não será dispicienda. Cedo, os governantes se aperceberam deste fenómeno, tomando como exemplo o índex de livros proibidos que acompanham todas as ditaduras ou, noutra latitude, a profusão de biografias de políticos nas vésperas de actos eleitorais.
No meu caso particular, o principal instrumento literário de interpretação da realidade é a obra de Eça de Queirós. Não falo apenas dos seus célebres romances, fala também das sua crónicas, as "Prosa Bárbaras, bem como o seu alter ego Fradique Mendes. Escritor brilhante, descreveu a sociedade do seu tempo com uma mestria inegualável, num registo prazeiroso e cativante que apenas a sua escrita me proporciona. Analisando de perto as personagens queirosianas, apercebemo-nos que, à parte do fuso cronológico e de todas as mudanças que lhe estão implícitas, continuamos a reviver actualmente com os mesmos erros que Eça identificou na sua época. Eles são inúmeros e vão desde o diletantismo mediocre, encarnado pelo conselheiro Acácio ou pelo João da Ega, até à hipocrisia do Clero, aduzida no "Crime do Padre Amaro", ou à mania das grandezas num registo provinciano, a fazer lembrar a passagem do Hipódromo de Belém nos "Maias" .
Mais paradigmática é a associação que Eça faz a pessoas concrectas, como é o caso de Bulhão Pato. Nos Maias, Pato sentiu-se retratado na personagem Tomás de Alencar. Um ultra-romântico, bacoco, de verso estéril, que Eça satiriza até pelo seu talento para a culinária. Não deixa de ser curioso que um homem de letras, que toda a vida lutou pelo reconhecimento intelectual junto de seus pares, tenha ficado para a posterioridade à conta das sua célebres (e deliciosas) ameijoas à Bulhão Pato.
Se tivesse que apontar alguma injustiça à prosa queirosiana, não tomaria Bulhão Pato como exemplo. Escolheria antes as Mulheres e o Brasil. Sao as duas bêtes noires do romancista. A mulher é representada na sua venalidade, leviendade, ignorância, futilidade, sendo rara a personagem feminina que não incarne mais do que um destes "pecados". Creio que este complexo feminino se encontra relacionado com a ausência da figura materna. Filho de mãe incógnita!, foi criado pelos avós no Porto, tendo sido perfilhado por Carolina D'Eça pouco antes do seu casamento (Eça casou-se na casa dos 40 anos). Desconfio que Carolina D'Eça não seria sua mãe, tanto mais que a suposta mãe afirmou que a criança tinha nascido na Póvoa de Varzim, quando hoje se sabe que nasceu em Vila do Conde.
O segundo alvo predilecto de Eça era o Brasil (vide em "As Farpas" os artigos que dedicou ao Imperador D. Pedro II). Neste caso, penso que se tratava de uma atitude jactante, muito comum ao longo de século XIX, perante um país jovem que os portugueses ainda viam como uma espécie de "protectorado" luso.
Estes "ressabiamentos" queirosianos não obnubilam o papel importantíssimo que o autor teve na abertura de novas avenidas de pensamento e de mudança de mentalidades, tarefa que, volvido mais de um século, ainda não conseguimos concretizar.
Termino com uma blague, completamente verídica, que se passou na cerimónia de inauguração da estátua de Eça de Queirós no Largo Barão de Quintela, ao Cais do Sodré. O discurso ficou a cargo de Ramalho Ortigão, seu amigo de sempre, e contou com a presença de várias pessoas próximas do romancista. A estátua representa Eça a olhar para uma mulher despida, que representa a verdade nua e crua que o romancista sempre se esforçou por colocar em tudo o que escrevia. Quando perguntaram à sua antiga governanta a opinião acerca do monumento, esta respondeu que "o senhor estava muito parecido, mas a senhora... não sei como se deixou representar naqueles propósitos"!
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