No dia 19 de Dezembro de 2011, num post dedicado aos Duques de Aveiro, comecei o texto com uma legenda que ainda hoje se pode ler no monumento que fica num beco esconso, mesmo ao lado da célebre confeitaria de Belém:
"Aqui foram arrasadas e salgadas as casas de José Mascarenhas, exautorado das honras de Duque de Aveiro e outras, condemnado por sentença proferida na suprema juncta de inconfidência em 12 de Janeiro de 1759. Justiçado como um dos chefes do bárbaro e execrando desacato que na noite de 3 de Setembro de 1758 se havia cometido contra a real e sagrada pessoa de D. José I. Neste terreno infâme se não poderá edificar em tempo algum".
A coluna fica no beco do chão salgado, conforme se pode ler na placa com o topónimo, no exacto local onde se situava o palácio de José de Mascarenhas, Duque de Aveiro, cujas casas foram arrasadas por este ter sido sentenciado como um dos conspiradores na tentativa de regicídio de Dom José. Salgado, porque, como é do conhecimento geral, o sal impede as culturas de crescer nos campos de cultivo, pelo que se usou esta metáfora para, como refere a última linha da legenda, “Neste terreno infâme se não poderá edificar em tempo algum”. O facto de este monumento estar hoje engolido por casas num beco apertado, dá-nos conta de como a vontade dos homens, por muito poderosos que sejam, não resiste à nossa curta existência terrena. Em 1758, Lisboa ainda era um monte de escombros. Mal refeita do terramoto que a abalou 3 anos atrás, a cidade tinha-se mudado para ocidente, onde se chegou a equacionar a hipótese de ai fixar definitivamente o seu centro nevrálgico. Por estes anos, a administração do Reino transferiu-se para a zona de Belém /Ajuda. O Rei vivia no Barracão da Ajuda e, como é compreensível, rapidamente se juntaram na imediações os seus apaniguados. Não foi só em Belém que isso se verificou. Se olharemos com atenção em redor da Baia de Cascais, podemos ver ainda hoje os palácios do Duque de Palmela (de inspiração inglesa) e o do Duque de Loulé (de inspiração francesa) que os mandaram construíram no final do século XIX porque Cascais era o local de eleição do Rei Dom Luis – que curiosamente não tinha Paço na então vila de pescadores, ficando hospedado na casa do governador, conhecida por “Cidadela de Cascais”. Regressemos a Belém e ao dia do atentado. No dia 3 de Setembro o Rei regressava a altas horas da visita à sua amante, a marquesa “nova” de Távora, e é interceptado a caminho do Real Barracão - mandado erigir em madeira porque D. José, assustado com o terramoto, não quis nunca mais habitar um paço de alvenaria – sendo o coche real alvejado, ferindo o Rei num braço. No local do atentado foi erigida, por ordem de Dona Maria I, filha de D. José, uma Igreja a que chama da Memória (por alusão à memória do atentado), onde, curiosamente, hoje repousam os restos mortais do Marquês de Pombal.
O cocheiro conseguiu levar a carruagem real a caminho do cirurgião-mor e a rapidez com que o fez terá sido decisiva para salvar a vida ao monarca. Este episódio foi nos primeiros dias pouco comentado, com um sigilo pouco habitual em assuntos desta monta. Dizia-se muita coisa – inclusivamente que o Rei tinha morrido – mas nada transpirava do paço. O próprio Marquês de Pombal teve uma atitude muito passiva, mesmo quando já circulava o boato de que tinham sido os “Távoras” a atirar contra o Rei. Ressalve-se que o atentado teve lugar no dia 3 de Setembro e as prisões só começaram a meio de Dezembro (o edital tem data de 9 de Dezembro), ou seja mais de 3 meses depois da tentativa de regicídio. O que justifica este hiato? Diz-se que foi a própria amante do Rei a delatora do Duque de Aveiro e que a partir daqui outros implicados foram arrolados. Não tenho a certeza de que as coisas se tenham passado desta forma, mas este compasso de espera deve ter servido para Sebastião José arquitectar um plano para tirar o melhor partido possível do atentado, conducente ao fortalecimento do poder real, ou seja do seu próprio poder, quando já era o valido incontestado do Rei. As prisões começaram no dia 13 de Dezembro. Os Távoras foram encarcerados no pátio dos bichos do Paço de Belém, onde ainda hoje podemos observar os seus cárceres, no átrio da entrada da Calçada da Ajuda, actual da sede da presidência da República. As mulheres (Duquesa ade Aveiro e Marquesa de Távora e suas filhas) foram mantidas sob custódia em conventos. O Duque de Aveiro foi detido na sua quinta de Azeitão. As casas dos jesuítas foram cercadas pela tropa. O processo a que se faz menção no pelourinho do chão salgado foi extraordinariamente célere, culminando com a execução de 12 de Janeiro de 1759. A peça jurídica propriamente dita, classificam os especialistas, foi uma monstruosidade, mesmo para os parâmetros da época. Entre outras “pérolas” destaca-se o facto de até as testemunhas terem sido postas a tormento, para além da ausência de provas do crime. O único a confessar foi o Duque de Aveiro, interrogado na véspera de Natal (!), implicando os Távoras, provavelmente quebrado perante a tortura impiedosa a que todos os acusados foram submetidos. Com este processo Pombal desfere um golpe mortal nos seus inimigos figadais, que conspiravam na sombra para o derrubar. Dizia-se que este grupo era apoiado pelo próprio irmão do Rei, o futuro D. Pedro III, e que por esse motivo Pombal sempre desconfiou dele. No entanto, esta antipatia pelo infante não o impediu de “aprovar” o casamento com a herdeira do trono. Provavelmente concordou com o matrimónio acossado pela perspectiva de um casamento com um príncipe estrangeiro – e como tal menos “maleável” - ou então porque se apercebeu rapidamente que o irmão do Rei não andaria muito longe de ser um completo pateta. Depois destes fidalgos, faltavam os jesuítas. A antipatia com a ordem era assunto que extravasava a sua actuação em Portugal. No Brasil os jesuítas eram praticamente soberanos. A sua acção não se restringia às missões espirituais, tomando partido nos negócios que se faziam entre a colónia americana e a metrópole e na própria governação daquele gigantesco território. Pombal criou a companhia do Grão Pará precisamente para mitigar esse poder e para que a coroa reassumisse o controlo (e os proventos) desse comércio, criando a óbvia antipatia junto da Ordem. Por outro lado, eram os jesuítas que controlavam o ensino em Portugal, eram os confessores do Rei e da Rainha, e como tal faziam sombra ao poder do ministro. A acção de Pombal foi tão enérgica que não só conseguiu extinguir a ordem em Portugal, como mover influências junto da corte Espanhola e Francesa até conseguir a extinção da formal da ordem na Europa pelo Papa Clemente XIV. Ainda hoje não se sabe quem foram os verdadeiros responsáveis pela tentativa de regicídio, nem provavelmente algum dia se saberá. O mesmo sucede com o regicídio – este consumado – do Terreiro do Paço. Geralmente nunca ficam cabalmente provadas nem as circunstâncias, nem as responsabilidades pessoais pelos crimes políticos, ao contrário do que sucede na generalidade dos outros crimes. Porquê? Não vejo outra justificação que não seja a ligação a altas esferas da administração, que assim conseguem direccionar a investigação para longe dos verdadeiros culpados. Foi o que sucedeu no desacato de 1758? Teriam sido mesmo os Távoras e o Duque de Aveiro os responsáveis? A pergunta vai continuar sem resposta.
. Os meus links