Em Portugal quando se fala de regicídio associa-se imediatamente ao drama do Terreiro do Paço de 1 de Fevereiro de 1908, onde o Rei D. Carlos e o Príncipe D. Luís Filipe pereceram às mãos dos republicanos. No entanto, este episódio, de extrema importância para a implementação do regime republicano, está longe de ser um acto isolado. Ao longo da nossa História vários foram os monarcas que partiram em circunstâncias muito suspeitas. O trisavô de D. Carlos, D. João VI, morreu depois de comer uma laranja, supostamente com arsénico. Se recuarmos até ao século XV, temos o caso de D. Afonso V, que morreu depois de beber um copo de água no Paço de Sintra. Não faltou quem dissesse que o Rei tinha sido assassinado pelo filho, embora a dedicação que D. João II sempre manifestou em vida relativamente a seu pai não nos autorize a tirar esta conclusão. Recordemos que D. João II foi o único rei português a ser coroado 2 vezes. A primeira na sequência da abdicação de Dom Afonso V, que depois de perder a esperança no auxílio do Rei de França na famosa guerra da Beltraneja, decidiu vestir o hábito e seguir em peregrinação à Terra Santa. Escreveu ao filho para comunicar a sua decisão e entregou-lhe o poder. O Príncipe Dom João foi então coroado como D. João II, mas foi um curto “pseudo-reinado”, porque o seu pai foi obrigado a regressar pelo Rei de França, e ao chegar a Portugal reassumiu, pelo menos formalmente, o poder. No entanto, era já o futuro Dom João II que reinava de facto, embora os actos marcantes da sua governação datem do seu reinado efectivo, que durou de 1481 a 1495. Dom João II morreu com apenas 40 anos, depois de uma vida dedicada ao fortalecimento do poder real, abalado pela prodigalidade de seu pai, o tal que o deixou só “Rei das Estradas”. D. João II foi talvez o chefe de Estado mais amado pelo seu povo, rivalizando apenas com um presidente da República - Sidónio Pais – o único presidente da República assassinado em Portugal. D. João II usava uma analogia entre os oceanos e as nações. Dizia que no oceano existiam muitas espécies de peixe. Havia, por exemplo, a sardinha, que era em bastante quantidade, muito boa e barata, e o salmonete, que era escasso e caro. Dizia o Príncipe Perfeito que ele era pela sardinha. Esta metáfora resume bem a base de apoio de Dom João II: o povo. Nesta luta sem quartel contra o poder senhorial levou a cabo uma política brutal. Mandou enforcar o Duque de Bragança (seu cunhado), confiscando-lhe a casa ducal. Não satisfeito, mandou sentenciar o seu primo, em conjunto com outros fidalgos e o próprio Bispo de Évora, envolvidos numa conjura para o matar em Setúbal. D. Jorge da Costa, o célebre cardeal de Alpedrinha, teve que partir para Roma para salvar a pele. Na cúria romana foi um aliado da Rainha Dona Leonor, mulher de D. João II, contra a legitimação do filho bastardo de Dom João II: D. Jorge, Mestre da Ordem de Santiago. Dom João II não conseguiu legitimar o bastardo e a História de Portugal talvez lhe agradeça, porque rezam as crónicas que o Mestre de Santiago era uma fraca figura. Sucedeu-lhe antes o primo Dom Manuel, que ele mandou chamar quando se deslocou para as Caldas de Monchique (Algarve) à procurar de alívio para os males que padecia, talvez depois de lhe terem dado peçonha… É curioso que não tenha ido para as Caldas de Óbidos, actual Caldas da Rainha, que foram fundadas pela sua mulher, e tenha ido para o Algarve. A tese de que terá sido envenenado pela mulher nunca foi dissipada mas também nada nos leva a essa conclusão, pelo menos de uma forma credível. Já li que esse seria o significado da fonte Bicéfala, em exposição no MNAA, com a figura de Dom Manuel e da Rainha! O que está provado é que Dom João II chamou o primo e sucessor (e irmão da Rainha) quando estava no Algarve e este, interceptado pela irmã, nunca chegou a ir. Teria Dona Leonor receio que o marido lhe matasse outro irmão, abrindo o caminho para a realeza de Dom Jorge? O Príncipe Perfeito acabou por morreu em Alvor, apenas com os seus mais próximos, entre os quais Garcia de Resende. A sua morte foi motivo de júbilo para os fidalgos e de consternação para o povo, que amava aquele Rei e o reconheciam como um justo. Os nobre recusaram-se a pôr luto pela morte do Rei, porque entendiam que a morte do tirano não merecia esta consideração. No entanto, tiveram que o fazer porque os barbeiros recusaram-se a fazer a barba aos fidalgos durante 6 meses, que era na altura a principal manifestação de luto. Ou seja, estiveram de luto, quer quisessem quer não, porque o povo assim o quis.
Quando comecei este post o meu objectivo era falar de um malogrado regicídio porque todos os que apresentei foram bem-sucedidos. O único rei que temos conhecimento que escapou com vida a uma tentativa de regicídio foi Dom José I. Este foi alvejado na Calçada do Galvão no dia 3 de Setembro de 1758, mas sobreviveu ao atentado. Nunca poderemos dizer que foi o único rei que escapou a um regicídio, porque esta conclusão só é fácil de provar em casos que envolva armas de fogo. Nos casos de envenenamento, muitos outros poderão ter escapado sem que haja registo. No próximo post falarei do malogrado regicídio e da acção enérgica e polémica do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo.
Comemora-se hoje pela última vez o feriado alusivo ao dia de implantação da República. Já estávamos habituados ao estafado acontecimento do hastear da bandeira pelo presidente da República na varanda dos paços do Concelho, pelo que fui surpreendido pela mudança de local. Por receio dos protestos populares, que se têm feito ouvir em todos os eventos públicos onde participam políticos, desviou-se a comemoração para o esconso Pátio da Galé!
É do conhecimento geral que a República foi proclamada na Câmara de Lisboa. Menos conhecido é o motivo porque escolheram a edilidade Lisboeta para assinalar este feito. Podiam ter escolhido o parlamento, ou mesmo o paço da Necessidades, embora neste último caso se compreenda que não quisessem começar um novo regime num edifício escalavrado pelo bombardeamento do cruzador Adamastor, desferido a partir do Tejo. O motivo é mais simples. Em 1908 os republicanos venceram as eleições para a Câmara Municipal de Lisboa, traduzindo a forte implementação que tinham na capital, centro de negócios onde se movimentava uma burguesia que tinha ganho um grande protagonismo com o fomento fontista. No entanto, à escala nacional, os republicanos eram uma minoria. Se fossem maioritários podiam ter chegado ao poder por via eleitoral, o que esteve sempre longe de acontecer. É verdade que existia caciquismo, ao serviço dos partidos do rotativismo, e a Igreja católica – que tomou uma posição activa anti-republicana (o que lhe valeu muitos dissabores na primeira república), mas este facto não explica tudo. Em 1910, só existia uma república na Europa, que era a França. Porque motivo teríamos que ser pioneiros na mudança de regime se não o éramos em mais nada? É um enigma a que não consigo responder, mas a sucessão de eventos desde o últimatum, passando pelo anacronismo e lutas intestinas dos partidos do rotativismo, e por fim o regicídio, tornaram a mudança de regime inevitável. A crise dos partidos monárquicos foi identificada bem cedo. O sistema de designação do governo era então perverso. O governo quando perdia o apoio no parlamento pedia ao rei a demissão. O monarca nomeava o outro partido (Progressista ou Regenerador) que se encarregava de marcar eleições. Esse partido no poder designava os governadores civis e outras autoridades locais afectas ao seu partido, que arregimentavam os votos de um povo pouco esclarecido, votando massivamente no partido que o cacique indicava.
A este sistema caduco opuseram-se grandes vultos da intelectualidade de então, com destaque para Oliveira Martins, que tentou fundar a Vida Nova, que propunha a refundação da política portuguesa, depositando uma enorme esperança no então príncipe Dom Carlos, propugnando por um papel mais interventivo do Rei. Este movimento não vingou, mas D. Carlos não desistiu de refundar o regime. Apostou num político enérgico, que fundou um novo partido, dissidente do partido Regenerador, e que tentou incutir um novo rumo à política portuguesa. Esse político foi João Franco. Debateu-se com a feroz oposição, quer dos republicanos quer dos tradicionais partidos monárquicos, para além de outro partido que nasceu noutra dissidência, a Renovação Progressista, comandada por José Maria Alpoim.
João Franco foi apelidado de ditador, quando não o foi. Segundo a Carta Constitucional o parlamento tinha que funcionar durante um período mínimo de 3 meses ao ano, período que foi respeitado. O espaço de tempo entre o encerramento das cortes sem eleições também foi respeitado, uma vez que estas estavam marcadas para Abril de 1908, como se veio a verificar. No entanto, já João Franco tinha sido apeado do poder depois do regicídio de D. Carlos, de que foi responsabilizado, pelo ambiente crispado que tinha criado. D. Manuel II afastou-o do poder, e o próprio afastou-se de vez da política até ao final da sua vida. A injustiça de que foi alvo foi uma certidão de óbito para a monarquia portuguesa.
D. Manuel iniciou um período que lhe chamou de “Acalmação”, que de calmo só teve o nome. Sucederam-se os chefes de governo sem conseguir impor um rumo de governação. O 5 de Outubro era inevitável, embora a forma como a manobra militar se desenrolou se tenha assemelhado mais a um filme cómico, argumento digno de um Charlie Chaplin.
O golpe militar propriamente dito teve início no dia 3 de Outubro, quando D. Manuel recebia em Belém o Presidente da República do Brasil. A rebelião não teve contudo a adesão esperada, pelos vários quarteis que não se mobilizaram, e o directório republicano viu-se a braços com um golpe fracassado. O chefe militar da operação, Cândido dos Reis – o célebre Almirante Reis que deu nome a metade das ruas deste país – apercebeu-se do logro e suicidou-se. Na véspera, outra baixa de vulto foi a do médico Miguel Bombarda, psiquiatra, um dos chefes civis do golpe, assassinado por um doente, e que partilha ainda hoje o protagonismo na toponímia nacional com o Almirante Reis.
Perante este cenário de golpe falhado, quando os revoltosos já recordavam o malogro do 31 de Janeiro, houve um oficial, Machado Santos, que não deu por perdida a batalha. Arregimentou os seus homens na rotunda (actual Praça Marquês de Pombal), e dali não saiu. As forças leais ao governo posicionaram-se nos Restauradores e assim ficaram quase um dia. Perante este impasse, o ministro Plenipotenciário da Alemanha (embaixador, na linguagem actual) meteu-se num carro e com uma bandeira branca deslocou-se ao reduto dos revoltosos numa tentativa de mediação entre ambas as partes. Os golpistas viram um homem com bandeira branca a subir a avenida e pensaram que as tropas leais ao governo se estavam a render. Desceram a avenida e ninguém se lhes opôs. Ninguém, para além de Paiva Couceiro, que sozinho não conseguiu inverter a situação comico-militar. O Rei foi para Mafra, de onde partiu para a Ericeira no dia 5 de Outubro, a caminho do exílio londrino, a bordo do Iate Real Amélia. Machado Santos, o herói da rotunda, foi assassinado na célebre noite sangrenta de 1921, pelos próprios republicanos, movidos pela sanha e balburdia que marcaram toda a primeira república.
Paiva Couceiro refugiou-se na Galiza, liderando as incursões monárquicas, conseguindo em 1919, após a queda de Sidónio, restaurar durante 1 mêso regime no Porto, a chamada Monarquia do Norte.
D. Manuel e sua mãe viveram no exílio até ao fim dos seus dias. O Rei dedicou-se a uma intensa actividade bibliográfica em Londres, conseguindo o estudo mais completo feito até hoje sobre livros antigos portugueses. Morreu em 1932, ainda jovem, regressando à pátria, onde foi recebido com toda a dignidade que lhe era devida pelo governo do Professor Salazar.
O mesmo Salazar convidou a rainha Dona Amélia para regressar à sua pátria de adopção, já depois da II Guerra Mundial. A longa vida da rainha permitiu-lhe regressar ao país do qual fora soberana e visitar os seus mortos, onde se demorou durante várias semanas. Não faltou a visita ao Palácio da Pena - onde viveu os melhores momentos em Portugal - e a passagem pelo Terreiro do Paço - onde viveu o momento mais dramático da sua vida, no dia 1 de Fevereiro de 1908. Neste dia, ficou a imagem da rainha, no alto do seu 1,86 m de altura, a enfrentar os regicidas com um ramo de flores.
Neste 5 de Outubro, é para ela que vai a minha homenagem.
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