Façamos esta reflexão no plano puramente teórico: imagine que alguém, com quem estamos casados, mata (ou manda matar) o nosso irmão, o nosso cunhado e força uma irmã ao exílio. Pois bem, foi com esta situação que a Rainha Dona Leonor se deparou nos anos de matrimónio com D. João II, justificando a relação complexa que tiveram até aos últimos dias (ou para ser mais exacto, até ao último dia).
Pela descrição, nada nos levaria a supor que este rei tivesse granjeado a aurora da perfeição, no entanto devemos, em abono da verdade, relativizar estes factos com o contexto dificílimo com que ele se deparou.
O seu pai, D. Afonso V, foi um rei fraco, que se deixou manietar completamente pelas classes abastadas, prodigalizando-as com exacerbadas mercês que deixaram completamente exangue o erário régio. Quando D. João II é aclamado tinha só as estradas do reino (palavras do próprio) e uma nobreza e um clero a rebentar pelas costuras de opulência. D. João II quis desde o primeiro minuto opor-se a isto, tentando reverter para a coroa parte do património desbaratado por seu pai. Como seria de supor, a principal vítima foi a Casa de Bragança, cuja fortuna vinha desde os tempos do Condestável Nuno Alvares Pereira. D. Fernando II, que era então o 2º Duque de Bragança, foi acusado de alta traição, por supostamente estar envolvido numa conspiração para matar o monarca. Este duque era casado com uma irmã da rainha, que depois teve de fugir com o seu filho, D. Jaime, para Espanha, na sequência da condenação à morte do seu marido, sentenciado com a pena de morte na Praça do Geraldo, em Évora. Nesta fuga para Espanha talvez esteja a chave para o enigma da saída de Portugal das célebres tapeçarias de Pastrana, sobre as quais já escrevi há uns anos.
Depois deste episódio, a nobreza portuguesa ficou em choque. Se é verdade que nada se apurou relativamente à culpabilidade do Duque de Bragança, cuja casa foi extinta e em grande parte incorporada no património régio, está provado que os fidalgos mais importantes passaram deliberadamente ao ataque, gizando um plano para eliminar o Rei, antes que este lhes apontasse as suas baterias.
Nesse plano, outro irmão da rainha, D. Diogo, Duque de Viseu, teve um papel de destaque, numa urdidura que tinha também envolvidos, entre outros, o Bispo de Évora (D. Garcia de Menezes) e o Senhor de Sesimbra (D. Guterre Coutinho).
O Plano era o seguinte: D. João II estava em Alcácer a caçar e quando, no regresso, desembarcasse em Setúbal cairíam-lhe em cima os conspiradores, numa situação em que a guarda-real pouco poderia fazer. Sucede que um dos conspiradores, Dom Guterre Coutinho, Senhor de Sesimbra, para demover o irmão, que pretendia ir para o estrangeiro, confidenciou-lhe o plano de regicídio, assegurando-lhe que a situação ia mudar e assim ele não precisaria de ir para o estrangeiro. D. Vasco Coutinho foi no entanto denunciar ao monarca o plano que os conspiradores tinham delineado, mas obteve a garantia deste de que o irmão seria poupado (que este não cumpriu). D. João II regressa por terra e o plano sai gorado. A vingança não se fez esperar. Chama o cunhado a Setúbal e apunhala-o (ou manda apunhalar) no próprio Paço. O Bispo de Évora morreu numa cisterna do Castelo de Palmela e D. Guterre em Avis. Vasco Coutinho foi feito Conde de Borba, terra que tinha sido incluída na coroa depois da extinção da Casa de Bragança, e mais tarde Conde de Redondo, quando D. Manuel restaura a casa Brigantina e inclui novamente Borba nos seus domínios. Não deverá ter sido fácil para Dom Manuel resolver este diferendo, sabendo que na origem daquela casa estaria a causa da morte do seu irmão, Dom Diogo.
A Rainha Dona Leonor teve que suportar toda esta situação. Fê-lo em silêncio, ou pelo menos de uma forma discreta. Não é de excluir, e muito se especula a esse respeito, que tenha assumido uma posição hostil relativamente ao marido. Esta situação deve ter sido agravada quando morreu o filho único do casal, D. Afonso, em Santarém, na sequência de uma queda de cavalo. Quando em 1491 morre o herdeiro, começa a colocar-se o problema da sucessão. D. João II tinha um filho bastardo, D Jorge (que erradamente apelidam de Lencastre), que era Mestre de Santiago. No entanto, caso este não fosse legitimado, seria outro irmão de Dª Leonor, D. Manuel, a herdar a coroa. D. João II fez tudo para o legitimar, inclusivamente tentou-o casar com uma filha dos Reis católicos, mas não teve sucesso nesta iniciativa. Dª Leonor bateu-se por todas as vias contra esta solução, na defesa dos direitos do seu irmão, face ao enteado, o não muito iluminado D. Jorge.
Foi esta a origem dos rumores sobre o papel da rainha na morte de D. João. Suspeita-se que tenha sido envenenado, e quando agonizava com as sequelas da peçonha que provavelmente lhe deram, foi para uma termas. O curioso é que ele não foi para as então chamadas Caldas de Óbidos, muito ligadas à rainha, optando antes por Mochique. Quando estaria quase no leito de morte, mandou chamar D. Manuel, seu sucessor presuntivo, mas este parece que resistiu a juntar-se ao monarca, até que este lhe deu uma ordem formal, à qual D. Manuel acatou. No entanto a Rainha, provavelmente temendo pela vida do irmão, impediu-o de chegar a Alvor, local onde o Rei acabou por falecer.
A especulação em torno da morte de D. João II continua a ser um mistério, que tem alimentado muitas teorias. Umas das minhas predilectas é a história da fonte bicéfala, em exposição no MNAA. A fonte tem duas cabeças e os símbolos de D. Manuel (a esfera armilar) e o camaroeiro(símbolo de Dª Leonor), sendo a escultura cingida por uma pele de serpente, o que levou à teoria de que a serpente significaria o veneno que a Dª Leonor deu ao marido para o matar.
Mesmo sem o saberem, foram os monarcas uma excelente dupla. Dº Leonor na sua acção caritativa, onde se destaca, evidentemente, a fundação das misericórdias e das caldas públicas, e D. João II no fortalecimento do poder do Estado e na continuação da obra do Infante D. Henrique, que nos levou à Índia. Contudo, essa glória foi cair nos braços de D. Manuel, que muito deve à irmã ter sido o herdeiro do trono.
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