Quando Portugal escreveu a mais gloriosa página da sua História – a chegada à Índia por via marítima e a descoberta do Brasil – estava no trono o Rei D. Manuel I, cognominado de “O Venturoso”. No fundo este epíteto resume aquilo que ainda hoje se pensa que foi o seu reinado. Teve ventura, ou, numa linguagem mais corrente, muita sorte. Assim se explica que na Exposição Universal de 1998, os grandes homenageados tenham sido o Infante D. Henrique e D. João II, este último dando nome à principal avenida onde decorreu o certame.
Será justo este juízo? Confesso que já pensei que sim, mas hoje em dia tenho mais dúvidas. As minhas dúvidas fundam-se na análise do contexto em que D. Manuel recebe a coroa, muito a contragosto, diga-se, do seu antecessor – o implacável D. João II.
Ao Príncipe Perfeito devemos um legado notável na construção de um projecto para Portugal. Sucedendo ao seu pai - o pusilânime D. Afonso V - viu na chegada marítima à Índia a chave para resolver o problema crónico da fazenda pública (este problema vem de longe).
Ao contrário do que por vezes se diz, as especiarias já chegavam à Europa muito antes dos portugueses abrirem a Rota do Cabo. Eram levadas pelo Mar Vermelho ou pelo Golfo Pérsico em navios turcos e depois o trajecto até as costas do Mediterrâneo era feito por terra em caravanas de mouros, que depois as vendiam a navegadores florentinos, genoveses ou venezianos que as transportavam para a Europa pelo Mediterrâneo. Com tantos intermediários, estes produtos - muito apreciados e valiosos – chegavam caríssimos à Europa.
D. João II teve a ideia de aproveitar os avanços na exploração da costa Africana – obra do seu tio-avô, o Infante D. Henrique – para chegar à India, contornando África e assim dominando este lucrativo negócio. Sem intermediários nem portagens, estavam garantidas boas margens para o nosso país no comércio com os principais entrepostos da Europa.
Este plano efectivou-se e D. João II só não o pôde ver concretizado porque morreu, em circunstâncias muito estranhas, em 1495, quando contava apenas 40 anos. Desconfia-se que tenha sido envenenado, o que não admira pela brutalidade com que D. João II conduziu os negócios do Estado, movendo uma guerra sem quartel contra os fidalgos, muito prodigalizados no reinado do seu pai. Recordemo-nos que D. João II sentenciou o Duque de Bragança – confiscando-lhe o ducado – e matou (talvez pelas próprias mãos) o seu primo e cunhado – D. Diogo Duque de Beja. O rol não se fica por aqui, que o digam o Bispo de Évora, ou um pobre coitado que olhou em demasia para a sua irmã – a Princesa Santa Joana.
Foi neste ambiente crispado, de forte tensão, entre o povo que amava D. João II e os fidalgos que o apelidavam de tirano, que D. Manuel herda o trono.
Neste contexto o Rei podia escolher apoiar-se mais nos fidalgos, que foram os grandes “advogados” da sua realeza, em detrimento de um reinado mais popular. No entanto, não foi isso que fez. Teve antes, a atitude inteligente de promover o equilíbrio e a união entre os portugueses. Vários são os exemplos dessa política de bom senso.
Restaurou a Casa de Bragança mas recompensou D. Vasco Coutinho, a quem D. João II tinha dado a vila de Borba (que pertencera à casa brigantina) concedendo-lhe a Vila de Redondo. Com a agravante de ter sido este mesmo Vasco Coutinho o delator do plano de regicídio de D. João II, e como tal, responsável pela morte seu irmão, D. Diogo, Duque de Beja.
Dom Manuel tentou satisfazer o pedido de Vasco da Gama, de lhe ser dado o título de Conde de Sines, como recompensa pela chegada à Índia. Sucede que Sines pertencia à Ordem de Santiago, cujo Grão-Mestre era D. Jorge, filho bastardo de D. João II, e seu rival na sucessão de D. João II, que muito se esforçou para que fosse o filho a suceder-lhe. Acabou por lhe dar a Vila da Vidigueira, não hostilizando o bastardo.
A própria empreitada da armada da Índia, confiada a Vasco da Gama, poderá ter sido ainda uma escolha de D. João II, porque o Almirante era filho do alcaide-mor de Sines, que, por conseguinte, dependia da ordem de Santiago. Afonso de Albuquerque, o grande Vizo-Rei da Índia, era também próximo de D. João II, fazendo parte do seu grupo de Ginetes (Guarda-Costas, na linguagem actual). Isso não o impediu de prestar grandes serviços à coroa de D. Manuel.
D. João II usava como metáfora que as nações eram como os mares, onde existiam muitas espécies de peixes. A sardinha que abundava, era boa e barata. E o salmonete que era também bom, mas era escasso e caro. D. João II era pela sardinha. D. Manuel não foi nem pela sardinha nem pelo salmonete. Foi um Rei de todos os portugueses, e por conseguir essa união entre todos os estratos da sociedade é que nós fomos tão grandes.
Grande lição para o século XXI.
Não conheço muitos detractores do Rei “Venturoso”. A bem dizer, só conheço um, ou melhor dizendo, uma: a historiadora Fina D’Armada, cuja obra obra é notável, sobretudo no estudo do papel das mulheres na epopeia dos descobrimentos, mas que aparentemente não consegue abordar as desgraças que sucederam ao Príncipe Perfeito sem culpar D. Manuel, inclusivamente o desastre de cavalo do Príncipe D. Afonso na Ribeira de Santarém!
Eu não me posso considerar um detractor de D. Manuel, mas também não me considero um deslumbrado pelo seu reinado. Já o escrevi que a este monarca bem se pode aplicar a máxima de Newton “se pude ver mais longe foi porque me pus aos ombros de gigantes”, sendo este gigante o Rei D. João II. Os gloriosos feitos do seu reinado foram todos projectados pelo seu antecessor. A chegada à Índia e ao Brasil foram obra do “Principe Perfeito” que apenas teve a infelicidade de morrer antes de ver o seu sonho concretizado. Vasco da Gama chega à Índia em 1498, apenas 3 anos depois da morte do monarca, não deixando de ser estranho que tenha sido um filho de um governador que estava ao serviço da Ordem de Santiago, cujo Grão-Mestre era o rival de D. Manuel a aceder ao trono, D. Jorge, a executar a façanha. A hipótese que defendo é que o nome terá sido escolhido ainda por D. João II, e que D. Manuel, inteligentemente, não alterou.
É este o mote para falar daquela que foi, na minha opinião, a grande proeza do “Venturoso”. Este Rei soube fazer a charneira entre duas facções que se confrontaram brutalmente nos dois anteriores reinados – as classes senhoriais e os concelhos; i.e. nobreza e clero por um lado e povo por outro.
Esta tensão social já existia desde o começo da nacionalidade, originando disputas violentas, como foram as guerras das infantas com D. Afonso II, a guerra civil entre D. Sancho II e D. Afonso III, e de certo modo entre D. Dinis e D. Afonso IV. D. Manuel chega ao trono, desafiando a teoria da probabilidade, tendo que lidar com um problema criado dois reinados antes, i.e. com D. Afonso V. O “Africano” foi completamente manietado pelas classes priviligiadas, numa onda prodigalizadora que varreu o reino, com claro prejuízo da nação. D. João II sucede a seu pai em 1481 e inicia imediatamente uma resposta brutal para pôr fim a esses abusos, que levou, por exemplo, à extinção da Casa de Bragança, cujo Duque era seu cunhado,à morte do Duque de Viseu (também seu cunhado) do Bispo de Évora, do Alcaíde-Mor de Sesimbra, entre outros.
Numa lógica sequencial, podíamos pensar que D. Manuel, que foi apoiado pelos grandes senhores, começando pela sua irmã, a rainha D.ª Leonor, na luta pela conquista do trono, opondo-se a D. Jorge, representasse o regresso à hegemonia dos nobres. Puro engano. O reinado de D. Manuel não foi uma revanche à política centralizadora de D. João II, mas também não foi um reinado “popular”. Foi uma síntese de ambos, numa atitude clarividente de tentar manter a unidade possível entre as várias classes sociais. Não faltam exemplos dessa política hábil. Para além da nomeação de Vasco da Gama para comandar a armada da Índia, o próprio Afonso de Albuquerque, que era um dos temíveis ginetes de D. João II, foi um grande Vizo-Rei da Índia, também nomeado pelo “Venturoso”.
D. Manuel restaurou a casa de Bragança mas teve a preocupação de manter intocáveis as doações feitas pelo seu antecessor. No caso da casa brigantina, com a sua extinção, D. João II deu Borba, que pertencia a esta casa, a D. Vasco Coutinho, irmão do Alcaide-Mor de Sesimbra e denunciante do atentado que estava em marcha contra D. João II. D. Manuel teve em conta esta doacção, mesmo sendo Vasco Coutinho o responsável pela morte do seu irmão, Dom Diogo, Duque de Viseu, num episódio que já referi em posts anteriores.
Como D. Manuel queria manter intacta a casa de Bragança, deu a D. Vasco a vila do Redondo, por troca com Borba, e assim nasceram os Condes de Redondo. Esta intervenção foi anos mais tarde retribuída pelo então Duque de Bragança, o desiquilibrado D. Jaime, 4º Duque de Bragança, que deu a D. Manuel a Vila da Vidigueira, para que ele pudesse pagar a Vasco da Gama os serviços prestados, depois de lhe ter prometido Sines, a sua terra natal, mas que não pôde concretizar porque esta era pertença da Ordem de Santiago.
Mais do que um rei de epopeia, D. Manuel foi um homem com um elevado sentido de justiça que conseguiu pacificar a sociedade portuguesa, ensaguentada por um confonto de classes que tinha recrudescido nos reinados anteriores, possibilitando a nossa grandeza. Quando os portugueses remam todos para o mesmo lado, mesmo sendo um povo pouco numeroso, até conseguem ser senhores do mundo. Se tivessemos aprendido esta lição de D. Manuel, hoje estaríamos numa situação bem diferente.
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