Escrevo este post com especial carinho. Falar da Igreja/convento de Santos-o-Velho é falar da minha segunda casa. Naquele local guardo as mais tenras memórias de infância. Foi ali que os meus pais se casaram, onde fui baptizado, fiz a primeira comunhão, assisti à catequese, participei em peças de teatro, brinquei, joguei à bola, enfim foi o meu berço. Nasci e cresci na Av. 24 de Julho no nº60, num prédio amarelo fronteiro às escadinhas da praia. Subia todos os dias essas escadinhas a grande velocidade, fosse de manhã para ir à Missa à Igreja de Santos-o-Velho, ou à tarde para ir à escola, na Rua das Janelas Verdes (num edifício que está hoje numa triste ruína). Estava longe de imaginar a História que aquele templo cristão tinha para contar, cuja antiguidade remonta ao período romano.
A origem do topónimo remete-nos para o martírio de três crianças Veríssimo, Júlia e Máxima em 308, acusados e sentenciados pelo prefeito romano de seguirem a fé de cristo. Estávamos então no período anterior à conversão de Roma ao Cristianismo, reinava então o Imperador Diocleciano, último grande perseguidor dos cristãos. O martírio das crianças antecedeu por escassos anos o Édito de Milão de 311, que não só toleraria à fé cristã, como a reconheceria como a religião oficial, numa altura em que o cristianismo já era um fenómeno tão difundido no Império, que não podia mais ser combatido com a violência.
Data do período visigótico a erecção de uma pequena ermida em honra dos mártires, cujos corpos tinham sido resgatados naquela zona ribeirinha, embrião da actual Igreja/convento. Os Visigodos eram um povo cristão que se fixou na península após a queda de Roma, submetendo outros povos europeus – Alanos, Vândalos e Suevos - que aqui tinham chegado anteriormente, quando a desagregação do Império de Roma já era evidente.
A pequena ermida terá sido destruída durante o período de dominação islâmica, que teve o seu dealbar em 711 e duraria até 1147, ano em que Dom Afonso Henriques, apoiado pelos cruzados, tomaria Lisboa para a cristandade. Foi o nosso primeiro Rei que mandou reconstruir a pequena ermida mas com maior dignidade, ascendendo à categoria de Igreja. Ao seu filho, D. Sancho I, devemos a construção do convento, que haveria ao longo do tempo a ter diversas utilizações, e onde se passaram episódios de suma relevância para a História de Portugal. Não terei nesta exposição grandes preocupações do ponto de vista de exaustividade. Escrevo, como sempre, “ao sabor da pena”, de forma espontânea e sem auxiliares, socorrendo-me apenas da minha memória, com as vantagens e desvantagens que possa ter. Prefiro as vantagens, que se prendem com a maior espontaneidade e prazer da escrita, que seriam prejudicadas com as interrupções de discurso.
No convento, mandado edificar pelo nosso segundo Rei, funcionou a primeira sede da Ordem de Santiago em Portugal. Os Espatários eram monges-cavaleiros que tiveram um papel importante no processo de Reconquista, recebendo vastos domínios como recompensa pelos serviços prestados. A sede da Ordem funcionou em Santos-o-Velho até serem transferidos primeiro para Mértola, depois para Alcácer do Sal e, finalmente, para Palmela. Não se sabe ao certo a data da mudança, mas conhece-se a utilização posterior que foi dada ao edifício. Aqui foi instalada a Comenda Feminina da Ordem, constituída pelas mulheres e filhas dos freires, que por prerrogativa da Ordem tinham permissão para casar. Os cavaleiros de Santiago, principalmente no período de reconquista, viviam permanentemente em combate, pelo que a existência da Comenda era uma salvaguarda e um abrigo para as famílias dos cavaleiros. Para além das obrigações militares, as regras da Ordem proibiam a existência de contactos íntimos durante a quaresma e advento, pelo que a presença da família num local fácil de controlar também permitia garantir a observância desta regra.
Por este motivo esta comenda foi um albergue de pessoas ilustres, como por exemplo Filipa Moniz Perestrelo, mulher de Cristóvão Colombo, o descobridor das Américas, que chegou a Comendadeira da Ordem. Colombo nunca foi da Ordem de Santiago, mas o seu sogro, Bartolomeu Perestrelo (falecido muito antes do seu casamento) esteve ao serviço do Infante Dom João, que era Mestre da Ordem de Santiago. Por este motivo, a sua mulher e a sua filha terão vivido no Convento de Santos-o-Velho. No entanto, este descendente de italianos, mais tarde passou para a Ordem de Cristo, onde já estaria em 1419 (35 anos antes de nascer a sua filha Filipa), porque foi ao serviço do Infante Dom Henrique, Mestre da Ordem de Cristo, que lhe foi outorgado o título de descobridor da Ilha da Madeira. É evidente que nenhum dos 3 navegadores descobriram a Ilha, porque há muito ela estava descoberta. O que fizeram foi cumprir a ordem do Infante Dom Henrique para as povoarem e assim pôr cobro à cobiça castelhana.
Não sabemos as causas da mudança da casa do Infante D. João para a do Infante Dom Henrique, mas podemos dizer que Bartolomeu Perestrelo apostou no cavalo certo. O Infante Dom João foi o mais apagado da “ínclita geração de altos infantes” na designação da prole de D. João I e Dª Filipa de Lencastre de Camões. Este papel secundário é corroborado por Fernando Pessoa, que na “Mensagem” lhe dedica este poema, onde expõe a sua pequenez face aos seus irmãos:
Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemente parada;
Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita --
O todo, ou o seu nada.
Não sabemos a data da mudança, mas sabemos seguramente que quando Dº Filipa Moniz Perestrelo nasceu o seu pai permanecia ao serviço da Ordem de Cristo. Tal não a impediu de ser mais tarde comendadeira da Ordem de Santiago, provavelmente por não existir uma instituição congénere na Ordem de Cristo. Recordemos que o Infante Dom Henrique nunca casou, pelo que o seu sucessor foi o sobrinho, D. Fernando, Duque de Beja, que na tese portuguesa seria o pai de Cristóvão Colombo.
A comenda da Ordem de Santiago foi transferida para a zona oriental da cidade em 1490, estando o acto de transferência bem documentado pela pena de Garcia de Resende. O que não fica claro é o motivo da mudança. Oficialmente, aquilo que ficou lavrado nos documentos, justifica-se com base na melhoria das condições de vida das senhoras, em atenção à sua alta posição. No entanto, o novo local não apresentava melhores condições, bem pelo contrário, ficando a dúvida se a mudança não se devia apenas à vontade de D. João II ter uma casa de campo, naquilo que era, à data, um arrabalde de Lisboa. O Príncipe Perfeito não chegou a tomar posse do Convento da antiga comunidade feminina da Ordem de Santiago, que foi alugado a um homem muito influente, Fernão Lourenço, feitor da casa da Guiné, posto no qual acumulou uma imensa fortuna, investindo uma parte do seu erário na adaptação do convento à função palaciana. O emprazamento ou aluguer do Palácio, que se mantinha na posse da Comenda Feminina da Ordem de Santiago, reverteria para a coroa logo no reinado de Dom Manuel. Foi aqui, por exemplo, que se celebrou o casamento do “Venturoso” com Dª Isabel, filha dos Reis Católicos. Foi um casamento que anunciava um futuro grandioso para Portugal. A filha dos reis católicos já tinha sido casada com o Príncipe D. Afonso, filho de D. João II, cujo infortúnio haveria de lhe roubar a vida. O príncipe e herdeiro de todas as coroas ibéricas caiu do cavalo quando cavalgava na Ribeira de Santarém e esfumou-se assim o sonho de uma Ibéria unida sob o manto de um rei português.
Dom Manuel haveria de recuperar este plano, casando com a viúva do Príncipe, mas não teve melhor sorte. A rainha morre de parto de Dom Miguel da Paz, o tão ambicionado herdeiro, que sobrevive mas não chega à idade adulta. Ainda hoje pagamos o preço deste casamento ruinoso. Como contrapartida para os Reis Católicos aceitarem esta união, comprometemo-nos a expulsar os judeus. Isto, no ano em que Vasco da Gama chega à Índia e numa altura que precisávamos, mais do que nunca, de homens de negócios capazes de gerir aquele negócio lucrativo que tínhamos nas mãos mas que nunca soubemos potenciar.
Mas nem o “Venturoso”, e muito menos o filho e sucessor D. João III estiveram tão ligados ao palácio como o malogrado D. Sebastião.
O “Desejado” assina o epitáfio da época gloriosa dos descobrimentos henriquinos com a desastrosa aventura de Alcácer Quibir. Dom Sebastião gostava muito de estar neste palácio, tendo sido dali que partiu para a sua odisseia por terras africanas. Segundo uma tradição, foi numa mesa de pedra (que ainda hoje existe) que tomou a resolução de partir para a guerra. Terá sido mesmo na na Igreja de Santos - agora baptizada de Santos-o-Velho, com a transferência da Comenda Feminina da Ordem de santiago para a zona oriental (que ficou Santos-o-Novo) - que ouviu missa pela última vez em Portugal.
Com a morte de Dom Sebastião, o Convento regressa à sua função original, revertendo para a Ordem de Santiago, a sua posse efectiva. No entanto, viria mais tarde a ser mais vendida a uma família muito ilustre: a família Lencastre, descendentes, por via bastarda, de D. João II. O palácio manteve-se na família até à Repúbica e por esta via, ao longo dos séculos, passaram por este local pessoas tão ilustres como Dona Filipa de Vilhena ou os Marqueses de Abrantes, cujo topónimo na rua do Paço empresta a devida homenagem à gesta de notáveis que por aqui gravitaram.
Já no século XX o palácio foi adquirido pelo Estado francês, onde ainda hoje funciona a Embaixada daquela república. Para usufruto de todos, resta a Igreja, sede da paróquia de Santos-o-Velho, que depois de uma reconstrução operada no final do século XIX, mantém a sua configuração como eu sempre a conheci.
Outras histórias ficaram por contar. Por exemplo foi em Santos-oVelho que se fixou o arraial de D. Juan, quando pôs cerco a Lisboa, embora não saiba se o monarca castelhano se instalou ou não no convento. E foi também nesta paróquia que se situou o célebre Aterro da Boavista, elevado aos píncaros do romantismo em Portugal pela prosa de Eça de Queirós.
No entanto não penso em nada disto quando ali estou. Para mim, Santos-o-Velho será sempre o lugar onde eu cresci e vivi uma infância muito feliz, do qual guardo ternas recordações que jamais esquecerei.
Feliz 2013
Se existe um denominador comum aos dois maiores poetas portugueses, para além do seu talento indiscutível, são os versos encomiásticos que dirigiram a D. Sebastião. Se no caso de Camões isso seria praticamente obrigatório, no caso de Pessoa essa devoção sempre foi um mistério para mim. Os Lusíadas são publicados em 1572, em pleno reinado de D. Sebastião, pelo que é normal que Camões dedicasse a obra ao ilustre descendente daquela gesta ilustre de que nos fala a sua obra-prima. Mas Camões não se ficou pelo elogio, na última estrofe incentiva-o a continuar os feitos notáveis de seu avós, que era, diga-se, voz corrente na altura para fazer face às dificuldades crescentes, que nem sequer poupavam as classes mais privilegiadas. O país estava sedento de um projecto mobilizador e achava-se que a porta de saída do marasmo em que tínhamos mergulhado era a conquista de Marrocos. Para Pessoa, o rei “Encoberto” talvez tenha sido mais uma charneira entre o Império Manuelino do século XVI e o seu imaginário “V Império”, em pleno século XX, forjado nos versos dos poetas. Voltaríamos a ser grandes, a ter o mundo nas mãos, mas num Império espiritual, místico, que começaria com o regresso de D. Sebastião, ponto de inversão desta trajectória descendente que seguíamos desde o seu desaparecimento nas praias marroquinas.
O mito do regresso de D. Sebastião é talvez o fenómeno mais conhecido da História de Portugal, embora por vezes não seja compreendido em toda a sua plenitude. Em primeiro lugar, estaríamos a ser desonestos se atribuíssemos a D. Sebastião a excusiva responsabilidade pela decadência portuguesa, que ninguém discute que teve lugar no final da Iª metade do século XVI, mas que é anterior ao seu reinado. Com D. João III, seu avô, já nos debatíamos com a concorrência que nos moviam os holandeses nos mares da Índia, e faltava um plano estratégico que nos permitisse gerir um Império espalhado por quatro continentes. O único facto positivo, foi o abandono das praças do norte de África, que nunca serviram para nada, para além de ser um sorvedouro de recursos do reino.
Para este cenario sombrio, contribuiu ainda a expulsão dos judeus, grandes senhores da finança, que dominavam o comércio das Índias, e que se acentuou com o estabelecimento da inquisição em 1536. Não é por acaso que ainda hoje dizemos a alguém, quando não queremos que faça algo, para ter cuidado que se pode queimar…
Ao contrário do que se possa pensar, D. Sebastião não foi só “o desejado” depois da sua inglória partida para Alcácer Quibir. Ainda não tinha nascido e já o era, não estivesse o Reino a suspirar por um varão que pudesse suceder ao seu avô, D. João III. Isto porque o seu pai, príncipe D. João, era o único filho homem que podia suceder ao “Piedoso”. Parece que teve sempre uma saúde muito frágil. Ainda o conseguiram casar com uma filha do Imperador Carlos V, mas morreu quando a sua mulher estava grávida deste menino. Deste menino, digo eu agora. Na altura, ninguém sabia se era menino ou menina, até que a criança efectivamente nascesse. Começou aí o epíteto de “O Desejado”, porque o Reino rezava por um varão que pudesse chegar a Rei. As preces divinas foram atendidas e em 1554 nasceu um menino, única vergôntea real. Três anos depois, morre D. João III, e essa criança é o novo Rei de Portugal. A regência é ocupada primeiro pela sua avó, D. Catarina, e mais tarde pelo Cardeal D. Henrique, seu tio-avô, que na altura era Inquisidor Mor e viria a ser o último monarca da Casa de Aviz.
A saúde do novo rei era uma preocupação constante, porque era aquela criança o penhor da independência portuguesa, e era crucial que pudesse chegar à idade adulta e casar, para dar ao reino descendentes. Voltou a cumprir-se o desejo da nação. O jovem Rei completou 14 anos, idade em que se atingia a maioridade, e começou o seu reinado pessoal. A partir daqui é que a situação se complicou. Não tanto pelos devaneios que lhe povoavam a mente, que outros monarcas não tiveram em menor grau, e que tinham ressonância na sociedade de então, mas pela sua completa aversão a mulheres. Não faltaram tentativas para o casar, mas o Rei nunca manifestou o mais leve indício de querer contrair matrimónio para dar um herdeiro à já velha monarquia fundada por D. Afonso Henriques. E foi sem casar, nem perspectivas disso, que se meteu naquela aventura pelo norte de África que nos colocou praticamente debaixo do jugo espanhol. Não discuto sequer a batalha em si, porque não existem relatos conclusivos sobre o que terá sucedido ao Rei nesse dia 4 de Agosto de 1578. O que relevo, é que esta data, que podia ser a certdão de óbito do Sebastianismo, acabou por ser um passaporte para a eternidade, com maior populariade em períodos de dificuldade, ou não vivessemos nós também em dias sombrios.
. Os meus links