Em 1998 celebraram-se os 500 anos da chegada da armada de Vasco da Gama à Índia. Acontecimento ímpar na História da humanidade, teve direito a uma magnífica exposição a que nenhum português ficou indiferente. No entanto, por paradoxal que seja, no meio do turbilhão que foi a Expo 98 pouco se falou desta epopeia e das suas implicações para a civilização que hoje conhecemos. Infelizmente, perdeu-se uma oportunidade ímpar para se dar a conhecer a missão civilizadora dos portugueses, que substitua de vez os tristes clichés que aprendemos na escola e sobre os quais não se discute, como se fossem vacas sagradas.
São esses dogmas que em vez de nos enriquecerem nos empobrecem, impedindo que vejamos para além das consequências materiais dos descobrimentos.
Comecemos pelo papel do Infante D. Henrique. Pessoalmente, considero que a sua figura está muito sobrevalorizada na historiografia actual, chegando ao ponto de se inventar uma escola (a famosa Escola de Sagres) que na realidade nunca existiu. O seu papel na exploração da costa africana só se verificou quando estas começaram a ser lucrativas, o que apenas sucede com a colonização da Madeira (e não descoberta como incorrectamente vem nos manuais) e o tráfico de escravos das costas africanas para trabalhar nas plantações de cana-de-açucar. Até então, o Infante dedicava-se à "gestão" da sua frota de corso, que equivale a dizer à pirataria de Estado. Não foi o único, o seu irmão, o Infante D. Pedro, cujo papel na exploração da costa africana é no mínimo tão importante como a do Infante de Sagres, também tinha a sua frota particular que se movimentava no Mediterrâneo.
Com isto não desvalorizo o papel das descobertas henriquinas, mas terão que ser relativizadas. Quando o Infante morreu, em 1460, o limite da exploração da costa africana estava na Serra Leoa (viagem de Pero de Sintra), ou seja ainda não tinha sido explorada metade da costa africana pelo lado do Atlântico.
O verdadeiro impulso foi dado pelo Príncipe Perfeito, homem superior, muito à frente do seu tempo, e cujo vigor foi decisivo para atingirmos o marco da passagem do antigo Cabo das Tormentas, baptizado da Boa Esperança por D. João II, com a viagem de Bartolomeu Dias de 1484.
A própria descoberta do Brasil, não a oficial mas a efectiva, ter-se-á realizado no reinado de D. João II. Provavelmente sob o comando de Duarte Pacheco Pereira, o "Aquiles Lusitano" nas palavras de Camões e um dos portugueses mais esquecidos e injustiçados pelos ventos da história, chegámos à costa do novo mundo. Esta descoberta não foi porventura oficializada porque faltava assinar o tratado que consagrasse à luz do direito internacional este novo território como possessão portuguesa. Este acordo apenas foi conseguido através do tratado de Tordesilhas, que substitui o tratado de Alcáçovas, e no qual ficou acordada uma latitude que colocava o Brasil na esfera portuguesa.
No entanto, mesmo não sabendo deste antecedente, seria plausível que a armada de Pedro Álvares Cabral percorresse aquela rota para chegar à Índia (mesmo sabendo que a navegação era feita longe da costa por questões de segurança e para aproveitar os ventos alíseos) e que depois de tamanha "descoberta" seguisse em direcção à Índia via rota do cabo, como se nada de significativo tivesse ocorrido? É óbvio que se tratou de uma viagem de soberania porque a descoberta estava feita, sendo apenas necessário chegar primeiro do que os Espanhois para que o Tratado de Tordesilhas não fosse obnubilado pelo poder normativo dos factos.
Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e sobretudo D. Manuel tiveram o seu mérito, mas sobretudo um legado imenso. Como disse Isaac Newton, "If I have seen further it is by standing on the shoulders of giants". D. Manuel teve a ventura de suceder a este Homem e de colher os louros que lhe eram devidos em vida.
No entanto, na minha opinião, existe quem mereça mais do que D. João II a coroa de glória por esse marco indelével da civilização. Refiro-me ao Povo português, que foi quem suportando privações que vão para além da capacidade humana, deu novos mundos ao mundo, aventurou-se por caminhos que jamais alguém ousara, não vacilando perante os enormes obstáculos que teve de vencer. É este heroi colectivo que Fernão Lopes não se cansou de exaltar e a quem eu presto a minha homenagem e o meu orgulho confesso por descender de tão notável gente.
Foi este povo que deu sentido à célebre frase do padre António Vieira " um palmo de terra para nascer, um mundo inteiro para morrer".
Bem hajam
Há vários anos que me interrogo acerca do motivo pelo qual não existe no nosso país um espaço dedicado às principais marcas que o povo português legou à humanidade:
-A língua portuguesa
-Os descobrimentos marítimos
Se no caso da língua portuguesa, o Brasil se encarregou de legar à lusofonia o "Museu da Língua Portuguesa" (caso paradigmático), no que respeita aos descobrimentos não existe qualquer evocação dessa grande empresa que mudou indelevel e permanentemente a História da humanidade.
Se a ausência nas nossas ex-colónias é normal e compreensível, por ser difícil fugir à glorificação do conquistador, não o será em território nacional. Volvidos mais de 500 anos do início desta epopeia, nunca se reuniu um espólio que pudesse contar não só às próximas gerações como aos turistas que nos visitam o maior feito da nossa História e um dos mais marcantes da História universal.
No que respeita a turismo, se a aposta passa por um turismo de qualidade, dirigido a um público com interesse cultural e geralmente com maior poder de compra, não sei como os agentes turísticos justificam esta pecha. Talvez o nosso turismo não tenha vocação para além do sol e praia, no entanto fica o lamento pelo discurso político incoerente.
Pessoalmente, devo fazer um "mea culpa" pelo pouco que tenho escrito sobre a presença portuguesa por esse "salso argento". Quando o fiz, fi-lo em termos pouco elogiosos para Vasco da Gama, o capitão dos mares da Índia (vide Vasco da Gama e Seus Mitos; 16-10-2006).
Consola-me a alma, saber que Camões fez o mesmo. Não raras vezes, o Grande Poeta, que ainda era familiar de Vasco da Gama, retratou o Capitão da armada portuguesa como um ingénuo, inábil e até timorato. Em II, 6, nos últimos dois versos, põe a descoberto a sua ingenuidade a propósito da cilada preparada pelo Rei de Mombaça, ao arrepio das fontes históricas:
Por onde o Capitão seguramente
Se fia da infiel e falsa gente
Por seu turno, não poupa elogios a Duarte Pacheco Pereira, a quem chama de "Aquiles Lusitano", sublinhando as injustiças que sofreu ao longo da sua vida, nomeadamente um prémio (presumivelmente São Jorge da Mina) em que foi preterido face a Brás de Albuquerque, filho de Afonso de Albuquerque, e arqui-inimigo de Camões (X, 24).
Isto fazem os Reis, quando embebidos
Numa aparência branda que os contenta;
Dão os Prémios, de Aiace merecidos,
À língua vâ de Ulisses fraudulenta.
Mas vingo-me: que os bens mal repartidos
Por quem só doces sombras apresenta,
Se não os dão a sábios cavaleiros,
Dão-os logo a avarentos lisonjeiros.
O grande arquitecto das descobertas, o Infante D. Henrique, não teve melhor sorte. Camões pouca atenção lhe dedica, contabilizando-se apenas um verso no grande poema camoniano. Como sublinha António Cândido, nunca nenhuma lenda o envolveu numa esfera metafísica, que o transportasse para a galeria dos heróis, à semelhança de outros, cujos méritos não são comparáveis ao mais célebre membro da "Ínclita Geração".
Não deixa de ser verdade que os coevos o descreveram como crudelíssimo, homossexual, venal e interesseiro. Também não será faltar à verdade dizer que não existem grandes façanhas que excitem o imaginário popular. Nunca participou em nenhuma batalha, nunca comandou uma armada, nunca cometeu nenhuma proeza heróica. Foi racional e, como nós sabemos, os racionalistas nunca foram bem amados entre nós.
Quanto à minha contribuição para a divulgação destes desígnios, cumpro-o, em parte, com este blog. Abordo questões da nossa História (embora nem sempre referente às descobertas) e escrevo em Português!
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