Pouca gente da minha geração saberá, mas Lisboa já teve outro aeroporto para além do da Portela. Situava-se em Cabo Ruivo e era exclusivamente utilizado por hidroaviões, maioritariamente pelos que faziam a travessia atlântica da Europa para os Estados Unidos. Como nos anos 40 a fiabilidade mecânica das aeronaves ainda não era a desejável, optava-se por fazer os voos longos em hidroaviões, uma vez que, em caso de urgência, podiam amarar no Atlântico. Como na Europa nem todas as capitais dispunham de aeroportos para hidroaviões, Lisboa funcionava como um “hub” onde os passageiros provenientes do continente americano, principalmente dos Estados Unidos, amaravam em Cabo Ruivo e depois faziam o transbordo para aviões convencionais que partiam da Portela com destino a outros países europeus. A ligação entre os dois aeroportos era feita por uma grande avenida construída para o efeito, baptizada de “Avenida Entre Aeroportos”, actual avenida de Berlim. Este procedimento foi muito utilizado, principalmente durante a II Guerra Mundial, quando a capital portuguesa se converteu num ponto de escala para os EUA, nomeadamente para os Judeus perseguidos pela Alemanha nazi. Este aspecto meramente logístico, que não chega sequer para uma nota de rodapé na história do século XX, constitui no entanto uma metáfora daquilo que foi sempre o nosso destino manifesto enquanto nação, nos últimos 5 séculos: fazer a ponte entre os diversos continentes. Há 500 anos iniciámos o processo que ficaria conhecido como globalização, caracterizado pelo estreitar de ligações entre a Europa, América, África e Ásia, sem esquecer da Oceania, cuja primazia portuguesa, na pessoa de Cristóvão de Mendonça, parece hoje em dia inquestionável. O país saiu das suas fronteiras europeias no século XV quando o Infante Dom Henrique deu indicação à sua frota da Ordem de Cristo, da qual era Grão Mestre, que até então se dedicava sobretudo ao corso, para avançar para sul na exploração do continente Africano. D. João II teve o projecto de chegar á Índia utilizando o legado de exploração costeira, que seria logrado com D. Manuel. No reinado do Venturoso começámos a explorar a rota do Cabo e chegámos ao Brasil, apesar de a colonização do colosso sul-americano ter ficado em banho-maria até ao reinado do seu filho, D. João III. Os entrepostos africanos eram pontos de escala para fazer aguada e também importantes mercados de compra de escravos, nomeadamente com o início da colonização do Brasil, que necessitava de mão-de-obra abundante, uma vez que os índios não se deixavam submeter ao regime esclavagista. Para além do negócio de transporte de especiarias para a Europa, onde a feitoria da Flandres era o centro nevrálgico de abastecimento do velho continente, os portugueses também se dedicavam ao comércio no Índico, fazendo trocas comerciais entre diversos portos, sem qualquer ligação à Europa. Desta forma, todos os continentes ficaram ligados pelos portugueses, autêntico embrião da globalização, embora numa lógica de trocas comerciais. No entanto são notórios os traços dessa passagem. A começar pela língua e costumes que legámos a territórios que hoje constituem estados soberanos na América, África e Oceania, sem esquecer o legado cultural nas antigas cidades-estado tomadas pela União Indiana em 1961 ou pela progressiva Macau, revertida à grande nação chinesa em 1999. É evidente que hoje em dia as características e a proximidade à escala planetária são muito diferentes, com a sofisticação dos meios de transportes de tecnologias de informação, que permitiu aos povos estarem todo na mesma sintonia, com o grande beneficiário deste movimento ser o colosso norte-americano, cuja prevalência cultural constitui a arma mais eficaz para a sua hegemonia à escala global. Este fenómeno não nos deve desviar de uma constatação óbvia: o planeta Terra continua a ser um espaço onde coexistem realidades muito diferentes, manifestando-se sob a forma de desigualdades gritantes, nomeadamente entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Contudo, também não podemos deixar de registar que este movimento, ao contrário do que proclamavam os movimentos antiglobalização, tem contribuído para reduzir algumas disparidades, como comprovam países como a China, Índia e Brasil, cujo desenvolvimento exponencial se deve, em grande parte, à globalização, motivo pelo qual os movimentos de esquerda já não se insurgem contra este fenómeno como há 10 anos. E Portugal? Que papel e que benefícios pode retirar de um movimento que o próprio lançou as primeiras sementes há mais de 500 anos? Portugal viu-se reduzido territorialmente à sua condição de nação exclusivamente europeia com a descolonização de 1975 (a entrega de Macau em 1999 não diminui esta análise), e depois de um processo de instauração do regime democrático conturbado, viríamos a ser admitidos na união europeia em 1985. A partir daí, com a avalanche de fundos comunitários de que fomos beneficiários, criou-se a ilusão que num curto espaço de tempo seríamos tão europeus como alemães, franceses ou holandeses. Que atingiríamos o patamar de desenvolvimento económico e civilizacional dos nossos parceiros do centro da Europa. O que tinha obstado a que já lá estivéssemos fora o atraso provocado por esta visão pluricontinental de um regime autoritário e caduco, que nos manteve na retaguarda no pelotão do desenvolvimento. A crise de 2008 teve o condão de desmistificar, embora com pesados sacrifícios para todos os portugueses, esta visão eurocentrista. Não só Portugal se desenvolveu a todos os níveis no chamado período do Estado Novo, embora à custa de um regime autoritário que não admitia vias alternativas, como não era exclusivamente na Europa que iríamos aceder a esse estágio de desenvolvimento superior. A interpretação que faço desta realidade leva-me para uma questão a montante desta mera observação de dados estatísticos, que teimam em nos colocam atrás dos nossos parceiros europeus: Seremos mesmo europeus? A minha resposta é simples. Não somos, nem nunca seremos, “apenas” europeus, como os países do centro e norte da Europa, porque tal não faz parte do nosso ADN como povo. Nascemos com o apoio da Europa, com destaque para o apoio que São Bernardo de Claraval deu ao nosso primeiro Rei, ou dos cruzados do norte da Europa que ajudaram o mesmo D. Afonso Henriques a tomar Lisboa, mas nunca nos cumprimos na Europa. Tivemos que nos bater contra o nosso vizinho castelhano para garantir a nossa subsistência como nação, e partimos rapidamente à procura de um espaço vital através da odisseia marítima. Começámos no norte de África em 1415, onde voltaríamos em força no reinado de Dom Afonso V. Explorámos a costa africana e dobrámos o continente, abrindo-nos o caminho para a chegada à Índia. Com a exploração da Rota do Cabo, tocámos pela primeira vez no continente americano e soubemos preservar essa conquista através do Tratado de Tordesilhas, negociado anos antes. Estabelecemo-nos em África, como pontos de escala, mas a partir do século XIX, perdido o Brasil e sob a ameaça da perda das colónias, começámos um processo de exploração dos sertões africanos, constituindo as nações africanas que ainda hoje falam a nossa língua. Em síntese, nunca nos realizámos no continente europeu, assim como a Espanha e a Itália também nunca o fizeram. A Espanha voltou-se para a América e a Itália para o Mediterrâneo, não fossem as suas cidades marítimas de Veneza, Génova e Florença o centro do comércio entre a Europa e o Norte de África. Curiosamente, são estes países que estão a sofrer mais com a crise europeia de 2008. Se juntarmos a Grécia, que constitui um país moderno, nascido da emancipação face ao Império Otomano, temos o quarteto de países do sul, malquisto nas chancelarias do centro da Europa por estarem a braços com problemas de gestão da dívida soberana. Talvez não seja só uma coincidência, nem tão-pouco apenas um sinal de laxismo das contas públicas típicos de latinos. Talvez seja mais a matriz cultural, resultado de um passado de convivência com outros povos e realidades, que nos faz divergir do código de valores e conduta partilhados pelos países do centro e norte da Europa.
Se calhar, nós, e os países do sul em geral, não somos tão europeus como nos fazem crer.
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