Nestes dias não tenho feito outra coisa do que procurar algo que tenha a ver com Fernão Lopes. É uma busca quase doentia, animada pelo prazer da sua leitura, suprema recompensa! É pena, que seja tão dificil encontrar a sua obra nas livrarias. A última edição que tenho conhecimento é da Editora Civilização, e já data da década de 40 do século passado. A alternativa são os alfarrabistas, pagando a peso de ouro edições antigas.
Fernão Lopes é um cronista genial, de uma escrita cativante, mas que nuncas cede á tentação de embelezar a realidade com fantasias tão ao gosto da época. A sua preocupação em escrever a verdade é tão levada a sério que quando conhece mais do que uma versão dos acontecimentos, apresenta-as ao leitor sem tomar partido por nenhuma.
A vida de Fernão Lopes não é facil de reconstruir. O que se sabe dos documentos é que era Guarda-Mor da Torre do Tombo, ou seja era o responsável pelos documentos oficiais, que se reuniam numa torre do castelo de São Jorge, que se chamava de tombo, , que veio a dar tomo, e que significava livro, onde se fixavam as leis do reino e as colectas de impostos, de suma importância para controlo do erário régio. Não se sabe ao certo qual a data do seu nascimento, mas acredita-se que terá nascido por volta da crise de 1383-85. Amaioria dos autores convergem para a possibilidade de ser já nascido à data destes acontecimentos, desconhecendo-se, contudo, nem a sua filiação nem em que circunstância chegou à corte.
Já em idade avançada foi-lhe incumbida a tarefa de escrever as crónicas dos reis de Portugal, no reinado de Dom Duarte, ou seja quando este já ia na casa dos cinquenta anos, onde o cronista revela uma prosa completamente diferente daquela que era comum nas crónicas de então, não só em Portugal como na Europa. Atrevo-me mesmo a dizer que não conheço outro historiador que consiga descrever correctamente a realidade mas de uma forma cativante, empolgante, transportando o leitor para os acontecimentos que estão a ser narrados.
As suas obras foram a crónica de D. Pedro, D. Fernando e D. João (Iª e IIª parte).
Na crónica de Dom Pedro, revela-nos o carácter justiceiro do Rei, mas sem deixar de fazer afirmações polémicas, como a sua relação homossexual com o escudeiro Afonso Madeira, a quem el rei amava muito “mais do que aqui se deve dizer”, e a quem mandou cortar aquelas partes “que os homens em mor apreço têm”, por se ter relacionado com uma mulher casada. No caso do suposto casamento com Dª Inês de Castro, apresentando a versão dos factos, não deixa de referir aquilo que se dizia em surdina. O facto de nem o Rei nem Inês de Castro se lembrarem a data do casamento, o que para o cronista era estranho: como se podia esquecer data tão importante?
Na crónica de D. Fernando destaco a descrição da figura de Leonor Teles de Menezes, a quem chama de “aleivosa”, e do pusilânime D. Fernando, que mentindo ao povo de Lisboa, que se reuniu no largo de São Domingos para fazer ver ao Rei que era uma desonra casar com uma mulher já casada, fugiu para Leça do Balio, casando ai com a tal aleivosa. O povo, esse heroi omnipresente na prosa de Fernão Lopes, sofreu na pele o atrevimento, nomeadamenteo alfaiate Fernão Vasques, que tinha sido porta-voz do povo de Lisboa e que acabou no cadafalso. O drama de Dª Maria Teles, que foi assassinada pelo seu marido, infante D. João (filho de D. Pedro e Inês de Castro), vítima de uma urdidura montada por Leonor Teles”, também mereceu amplo destaque na crónica fernandina.
Contudo, a mais importante obra do genial cronista foi indiscutivelmente a crónica de D. João I, onde se relata a forma como a crise de 1383/185 conduziu a uma monarquia nova, por sinal a mais gloriosa da história portuguesa. No entanto, o Mestre, que deveria ser o heroi da obra, aparece muitas vezes diminuído, hesitante, quase como se fosse apenas um produto que o povo transformou num instrumento de luta contra a dominação senhorial, representada pelo Rei de Castela e os nobres portugueses que apoiavam as suas pretensões. Um exemplo da insegurança do Mestre é a forma como ele é desafiado por Álvaro Pais a matar o Andeiro, mas que este inicialmente recusa, e a forma como tenta sair do país depois de matar o valido da Raínha, sendo apenas demovido pelo povo de Lisboa. Fernão Lopes não deixa, no entanto, de salientar a sua faceta humanista, impedindo que a sanha revolucionária se virasse contra os judeus, salvos pelo mestre quando o povo de Lisboa, aliciado pelo proveitoso saque, se preparava para pilhar a judiaria. O caso da morte do Bispo também espelha a preocupação pela reposição da verdade do cronista, defendendo-o da acusação de estar ao serviço dos castelhanos (apesar de ser castelhano), acabando lançado da torre da Sé por não ter feito dobrar os sinos, como o povo lhe mandava enquanto acorria ao Paço de São Martinho para defender o Mestre, cumprindo o plano gizado pelo ex chanceler-mor de D. Pedro e Dom Fernando. O grande heroi da crónica, para além do povo, é Nuno Álvares. É dele que irradia todo o esplendor da alma portuguesa, glorificada na tarde de 14 de Agosto de 1385. É no campo de são Jorge, onde decorreu esta “ferida” batalha, que Fernão Lopes tão bem descreve, que ainda consegue encontrar espaço para uma tirada humorística. Conta-nos o cronista que depois da segunda investida castelhana começar a ser contida, alguns portugueses começaram a gritar “já fogem! Já fogem! E os castelãos [castelhanos], por não fazerem deles mentirosos, começaram a fugir cada vez mais!”
Melhor do que falar de Fernão Lopes, só ler a sua genial obra.
Quando falamos de Povo, podemos referir-nos a coisas bem diferentes, consoante a perspectiva que se perfilhe. Num sentido jurídico, enquanto elemento do Estado, em sentido político, enquanto Nação (e Portugal é dos poucos casos de Estado-Nação no mundo), em sentido cultural, enquanto comunidade histórica e, finalmente, numa perspectiva social referindo-se à divisão classista da sociedade, onde povo se situa num plano inferior.
Confesso que o Povo enquanto Nação, ou seja enquanto comunidade cultural, é aquela que mais aprecio, por se tratar de uma perspectiva inter-classista e baseada naquilo que nos une, ao invés daquilo que nos separa. Esta noção comporta, no entanto, uma dimensão jurídica e política, como elemento do Estado, para além do Território e do Poder Político. A diferença é que o Povo poderá não corresponder a uma Nação, existindo mesmo nações que estão divididas entre diversos Estados. A África, desenhada a régua e esquadro após a conferência de Berlim, é um exemplo paradigmático de ambas as situações.
Sendo Portugal um Estado-Nação, curiosamente isso não se sente no dia a dia. Quando nos referimos ao Estado, falamos "deles" não realizando que o Estado somos nós todos. O mesmo não se passa por exemplo nos cidadãos britânicos, que não precisam de Bilhete de Identidade nem sequer de Constituição (em sentido formal), para se referirem ao Estado como "nós". Porventura, esta diferença explica a nossa postura em coisas tão díspares como seja o cumprimentos das nossas obrigações fiscais ou mesmo na falta de valores patrióticos.
O Povo enquanto camada social de base foi descrito, por comparação com a Nobreza e o Clero, por D. João II de uma forma lapidar. Através de uma analogia, o Príncipe Perfeito dizia que os países eram como o mar, onde existem muitas espécies de peixes diferentes. O salmonete que era muito bom mas raro e caro, enquanto que a sardinha existe em abundância, é saborosa e muito barata... E acrescentava "Eu sou pela sardinha".
Ele bem sabia do que falava, pela luta que travou com as classes dominantes para atenuar os efeitos das doações de seu pai, que o levou a dizer que "o meu pai só me deixou as estradas do Reino para governar".
O Povo sempre foi o elemento dominante e mais preponderante nos momentos decisivos da nossa História, por absurdo que esta afirmação possa parecer. Quem esteve com o Povo sempre venceu. Assim foi em São Mamede, Ourique, Aljubarrota e guerras da restauração. É certo que o Povo esteve sempre numa situação subalterna, mas sempre que teve um desígnio em que acreditava, sempre levou de vencidas as dificuldades que por vezes não foram pequenas.
Os maiores cronistas portugueses como Fernão Lopes, Duarte Galvão, Rui de Pina, João de Barros, etc. tiveram sempre no Povo o seu elemento principal, apesar de não terem poupado na glória de quem os comandava.
Camões chama ao Povo "rude" e "néscio", o que não é de estranhar no seio dos poetas humanistas, que se dirigiam apenas a classes letradas. No entanto, a Nobreza também não é poupada, quando o Príncipe dos Poetas se refere à incultura das classes dominantes, que ainda não tinham "gerado" nenhum Homero ou Virgílio para contar as enormes façanhas da raça lusitana. Como Camões se enganou. Esse grande poeta foi ele próprio.
. Os meus links