Nos dias que correm já não é muito comum assistirmos a polémicas literárias como se viam há uns anos. A explicação, a meu ver, é simples. A febre do politicamente correcto. Em Portugal, como sublinhou um dia José Pacheco Pereira, não existem livros maus para a crítica. Ou seja, ninguém tem coragem de dizer que Saramago tem um grande problema com a gramática portuguesa, ou que Margarida Rebelo Pinto e Paulo Coelho escrevem bastante mal.
Este código de conduta é visto como algo de sacrossanto, e quando alguém decide romper com o mainstream cai-lhe o "Carmo e a Trindade" em cima. Das poucas polémicas que me recordo nos últimos anos conta-se a crítica corrosiva de Vasco Pulido Valente a Miguel Sousa Tavares, a propósito do seu romance "Rio das Flores", que o historiador classifica como "literatura de supermercado". Ou a crítica do escritor angolano, José Eduardo Agualusa, a Agostinho Neto (ex-presidente da República e do MPLA) considerando-o um "poeta mediocre". Este reparo literário valeu-lhe criticas violentas, tendo sido acusado de denegrir uma das grandes referência do povo angolano.
Na segunda metade do século XIX, a crítica literária era um lugar-comum nas páginas dos periódicos. Eça de Queirós esteve envolvido em várias, das quais se contam inúmeras com Pinheiro Chagas, com quem manteve uma relação de conflitualidade ao longo da sua vida.
A sua fase mais fecunda teve-a enquanto principal figura de um grupo de reflexão criado por 11 intelectuais, com sensibilidades bem distintas, mas imbuídos de uma nova mentalidade progressista de influência francesa, e que acabou por desempenhar um papel importante no despertar para novos paradigmas de desenvolvimento material, social, político, cultural e económico. Foram os "Vencidos da Vida".
Este grupo "jantante" coleccionou vários detractores ao longo da sua existência. Fialho de Almeida, chamou-lhes " dúzia e meia de ratões..., que quando juntos, o que pretendem é jantar, depois de jantar, o que intentam é digerir; e a digestão finda, se alguma coisa ao longe miram, tanto pode ser um ideal como um water-closet.
Esta crítica não ficou sem réplica, pela pena "venenosa" de Eça de Queirós, nos seguintes termos "o que é...estranho não é o grupo dos Vencidos - o que é estranho é uma sociedade de tal modo constituída que no seu seio assume as proporções de um escândalo histórico o delírio de onze sujeitos que uma vez por semana se alimentam.
Diz-se que Fialho de Almeida se alimentava de um ressabiamento atroz por não ter sido incluído nos repastos semanais no restaurante do Hotel Bragança. Contudo, ao contrário do que insinua Eça na sua réplica, o grupo não se limitava a jantar, tout court .
No entanto, a principal polémica que envolveu Eça de Queirós foi com o poeta Bulhão Pato, através do inevitável Pinheiro Chagas.
Pato sentiu-se retratado em "Os Maias" através de um poeta ultra-romântico, com apurado gosto pela culinária, de seu nome Tomás de Alencar. Pinheiro Chagas deu a devida publicidade ao desconforto do autor da "Paquita", e da sátira que este escreveu como desagravo pelo insulto que Eça de Queirós pretensamente lhe dirigiu.
Eça, nas páginas do "Tempo", num artigo de 8 de Fevereiro de 1889, nega ter-se inspirado em Pato, usando do seu refinado sentido de humor para rebater a acusação que lhe foi movida. Transcrevo o excerto mais sumarento do artigo:
"Ora Tomás de Alencar tem defeitos e qualidades, separados e alternados, que vão desde a carraspana até ao cavalheirismo. Em quais das virtudes ou vícios se reconheceu o poeta da "Paquita"?
Se foi nas virtudes, então aqui vemos um homem que solenemente se adianta, cercado dos seus amigos, e exclama para o público, com a fronte alçada:-"Apareceu aí um romance em que há um tipo de poeta, que tem lealdade, generosidade, uma honradez perfeita!...Ora com tão esplêndidas qualidades só eu existo em Portugal. Esse poeta, portanto, sou eu!
Neste caso, nunca nas idades modernas se terá visto um tão burlesco exemplo de pedantismo e farófia.
Mas se o sr. Bulhão Pato se reconheceu nos defeitos, então aqui temos um homem que, em meio dos seus amigos, se acerca do público, e declara com serenidade:- Apareceu aí um romance em que há um poeta que é um mediocre, um palrador, um farfante e um piteiro. Ora com tão pífias qualidades só eu existo em Portugal. Esse poeta, portanto, sou eu!
Neste caso, nunca no mundo se teria visto um tão doloroso exemplo de rebaixamento, de aviltamento próprio. "
Não acredito que Eça não tenha pensado, nem por um instante, em Bulhão Pato quando criou a personagem Tomás de Alencar, no entanto a genialidade da sua resposta deixa-me sem argumentos. É o privilégio dos grandes escritores.
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