Ao ler-se este título, pensar-se-á que me vou espraiar profusamente sobre a obra homónima que Eça terá escrito no final da década de 70 do século XIX, mas que só viu a luz do dia há pouco mais de 30 anos. Tratou-se talvez de um ensaio para "Os Maias", onde Eça retrata um caso de incesto, mas em vez de dois irmãos, relata esta relação proibida (e também involuntária) entre mãe (Genoveva) e o seu filho (Victor), que a primeira tinha abandonado quando tinha 23 anos (o afastamento familiar é recorrente na sua obra, não tivesse ele também sido afastado da sua família). Eça não quis fazer desta obra um grande romance, feito que haveria de almejar com a publicação da sua obra-prima, mas a obra não deixa de ser interessante, pela rudeza da linguagem e pela maior violência no trato, registo que optaria por não seguir em "Os Maias".
Dizia eu que não me ia alongar e já lá vão umas linhas, mas a obra de Eça é tão cativante que é quase impossível resistir ao seu talento. A "Tragédia da Rua das Flores" terá sido escrita por volta 1877, e não sei se o título terá ficado a dever-se a uma tragédia que ocorreu efectivamente nessa conhecida rua do Bairro Alto, em que o seu amigo Ramalho Ortigão foi um dos protagonistas.
A tragédia foi o assassinato de Claudina Guimarães, filha de um rico emigrante português no Brasil, às mãos do seu marido, então já uma figura muito conhecida e com enorme prestígio na elite política do regime constitucional Português: José Cardoso Vieira de Castro.
Vieira de castro descendia de uma família ilustre, mas parece que essa cepa nobre não lhe valeu meios de fortuna e desde cedo a ambição deste jovem levou-o ao Brasil para encontrar um casamento onde pudesse dispor dos meios de fortuna, que a sua vida parlamentar não lhe permitia. Acabou por casar com a filha de um emigrante natural de Fafe, regressando pouco depois a Portugal onde se fixaram na Maia (quem sabe se este facto não inspirou Eça para dar este nome à desaventurada família do seu romance). Depressa a província se revelou pequena e tacanha para o jovem casal, que se mudou de armas e bagagens para Lisboa, mais concretamente para a já citada Rua das Flores. Na sua casa confluíram intelectuais, entre os quais Ramalho Ortigão, onde se debatiam ideias, livros, temas mundanos, ao jeito das tertútlias burguesas tão em moda então. Este período coincidiu com a presença de Eça em Lisboa, e quem sabe se este também não participou nesses serões elegantes.
Estas reuniões onde o casal se dava a conhecer à intelectualidade lisboeta haveria de ser a sua perdição. Uma das suas presenças habituais era a de José Maria de Almeida Garrett, familiar afastado do grande escritor Almeida Garrett, e que se tornou amante de Claudina. Viera de castro descobriu esta relação proibida e apressou-se por chamar o seu amigo Ramalho Ortigão para desafiar o amante da mulher para um duelo. Almeida Garrett ter-se-á recusado a bater-se, propondo, em alternativa, sair do país como desagravo da sua falta.
Vieira de castro não se conteve e, sem contemplações, depois de adormecer a mulher com clorofórmio, matou-a violentamente na casa da Rua das Flores. Este tema apaixonou a sociedade portuguesa do seu tempo, com posições muito divergente a favor e contra Vieira de Castro. Um dos seus mais acérrimos defensores foi Camilo Castelo Branco, seu amigo de longa data. Não deixa de ser curioso que o autor de "Amor de Perdição" tenha tomado partido do marido ofendido, quando ele próprio esteve do "outro lado da barricada" no caso Ana Plácido, que o opôs ao marido legítimo desta, o comerciante portuense Pinheiro Alves.
É evidente que a amizade falou mais alto, ele que tinha sido acolhido por Vieira de castro quando rebentou o escândalo dos seus amores por Ana Plácido, sendo um dos mais acérrimos defensores de Viera de Castro.
Camilo foi parar à Cadeia da Relação do Porto, onde privou com o célebre "Zé do Telhado", tendo também a honra da visita do Rei D. Pedro V, que terá dito que aquela cadeia devia ser arrasada. Se Camilo acabou absolvido, Vieira de castro não teve a mesma sorte, acabando condenado ao degredo na Costa de África, onde haveria de morrer, ainda novo, de doença.
Poderia escolher também como título deste texto a obra célebre de Camilo - "Amor de Perdição"-inspirada na vida de um tio seu, mas perdoem-me se a minha costela queirosiana suplanta a camiliana, ainda que esteja a escolher entre dois dos maiores escritores portugueses do século XIX e também da nossa história.
A forma como interpretamos a realidade que nos rodeia depende de uma multiplicidade de factores, que podem ir desde as experiências que vamos vivendo, as pessoas que vamos conhecendo, os locais que visitamos, os livros que lemos, as matérias que estudamos, o trabalho que executamos,etc.
Não esquecendo todas estas influência e outras que não caberiam neste texto, gostaria de sublinhar a importância dos livros. Esta importância não será dispicienda. Cedo, os governantes se aperceberam deste fenómeno, tomando como exemplo o índex de livros proibidos que acompanham todas as ditaduras ou, noutra latitude, a profusão de biografias de políticos nas vésperas de actos eleitorais.
No meu caso particular, o principal instrumento literário de interpretação da realidade é a obra de Eça de Queirós. Não falo apenas dos seus célebres romances, fala também das sua crónicas, as "Prosa Bárbaras, bem como o seu alter ego Fradique Mendes. Escritor brilhante, descreveu a sociedade do seu tempo com uma mestria inegualável, num registo prazeiroso e cativante que apenas a sua escrita me proporciona. Analisando de perto as personagens queirosianas, apercebemo-nos que, à parte do fuso cronológico e de todas as mudanças que lhe estão implícitas, continuamos a reviver actualmente com os mesmos erros que Eça identificou na sua época. Eles são inúmeros e vão desde o diletantismo mediocre, encarnado pelo conselheiro Acácio ou pelo João da Ega, até à hipocrisia do Clero, aduzida no "Crime do Padre Amaro", ou à mania das grandezas num registo provinciano, a fazer lembrar a passagem do Hipódromo de Belém nos "Maias" .
Mais paradigmática é a associação que Eça faz a pessoas concrectas, como é o caso de Bulhão Pato. Nos Maias, Pato sentiu-se retratado na personagem Tomás de Alencar. Um ultra-romântico, bacoco, de verso estéril, que Eça satiriza até pelo seu talento para a culinária. Não deixa de ser curioso que um homem de letras, que toda a vida lutou pelo reconhecimento intelectual junto de seus pares, tenha ficado para a posterioridade à conta das sua célebres (e deliciosas) ameijoas à Bulhão Pato.
Se tivesse que apontar alguma injustiça à prosa queirosiana, não tomaria Bulhão Pato como exemplo. Escolheria antes as Mulheres e o Brasil. Sao as duas bêtes noires do romancista. A mulher é representada na sua venalidade, leviendade, ignorância, futilidade, sendo rara a personagem feminina que não incarne mais do que um destes "pecados". Creio que este complexo feminino se encontra relacionado com a ausência da figura materna. Filho de mãe incógnita!, foi criado pelos avós no Porto, tendo sido perfilhado por Carolina D'Eça pouco antes do seu casamento (Eça casou-se na casa dos 40 anos). Desconfio que Carolina D'Eça não seria sua mãe, tanto mais que a suposta mãe afirmou que a criança tinha nascido na Póvoa de Varzim, quando hoje se sabe que nasceu em Vila do Conde.
O segundo alvo predilecto de Eça era o Brasil (vide em "As Farpas" os artigos que dedicou ao Imperador D. Pedro II). Neste caso, penso que se tratava de uma atitude jactante, muito comum ao longo de século XIX, perante um país jovem que os portugueses ainda viam como uma espécie de "protectorado" luso.
Estes "ressabiamentos" queirosianos não obnubilam o papel importantíssimo que o autor teve na abertura de novas avenidas de pensamento e de mudança de mentalidades, tarefa que, volvido mais de um século, ainda não conseguimos concretizar.
Termino com uma blague, completamente verídica, que se passou na cerimónia de inauguração da estátua de Eça de Queirós no Largo Barão de Quintela, ao Cais do Sodré. O discurso ficou a cargo de Ramalho Ortigão, seu amigo de sempre, e contou com a presença de várias pessoas próximas do romancista. A estátua representa Eça a olhar para uma mulher despida, que representa a verdade nua e crua que o romancista sempre se esforçou por colocar em tudo o que escrevia. Quando perguntaram à sua antiga governanta a opinião acerca do monumento, esta respondeu que "o senhor estava muito parecido, mas a senhora... não sei como se deixou representar naqueles propósitos"!
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